terça-feira, 5 de janeiro de 2010

A dor na contramão


Existe algo de subversivo em sofrer no momento que todos comemoram. Ou melhor: instala-se um terrorista dentro de nós, uma dor-bomba que ameaça explodir tudo que seja sinônimo de alegria ao redor. Sempre pensei nisso quando passava em frente a um cemitério em dia de feriado. Senti na pele, quando caminhava para a igreja, para a missa de sétimo dia de minha mãe, em meio ao foguetório pela vitória da Seleção numa semifinal da Copa. A imagem da jovem negra, circulando perdida entre os caixões da família no enterro coletivo realizado em Angra dos Reis, no primeiro dia do ano, foi chocante o suficiente para trazer de volta essas imagens à mente.

As tragédias de Angra, de Ilha Grande e São Luiz do Paraitinga seriam terríveis em qualquer época do ano. Mas ocorreram em pleno réveillon e, com isso, parecem atirar em nossa cara o quanto tudo é efêmero. Nós, os contentes, é que desafinamos. O champanhe da véspera amarga na boca, a comida que sobrou parece desperdício e o branco da roupa encarde. A dor alheia, no momento da nossa festa, nos faz solidários - mesmo que a culpa cristã esteja fora do cardápio. Somos feitos de carne e sangue, o sofrimento de quem nem conhecemos nos lembra disso.

Por alguns instantes, pensamos que aquelas pessoas soterradas na Ilha Grande estiveram, três horas antes da tragédia, abraçando-se e desejando feliz ano novo uns aos outros. Talvez tenham ido dormir tontinhos de bebida, talvez tenham deixado pra amanhã um telefonema (as linhas estavam ocupadas...). Alguns talvez até estivessem ainda com a roupa usada na passagem de ano. Um casal morreu abraçado. A família jovem do interior, todos gordinhos - marido, mulher e filho - sucumbiu à avalanche sem ter tempo de aproveitar 2010. O ano foi curto demais para eles.
Não demorou para as autoridades comparecerem ao local das tragédias. Rapidamente surgiram os votos de pesar e as promessas de melhoria. Como se a ocupação irregular dos morros não fosse um problema de muito tempo atrás. Como se a culpa de ter morrido fosse dos pobres que escolheram as encostas para se arranchar. Agora, vem à tona que o governador Sergio Cabral havia autorizado uma ocupação ainda maior das encostas - pensando certamente na construção de condomínios de alto padrão, não em residências populares. O descaso com a natureza leva de roldão as dezenas de vidas humanas, mas a culpa será sempre da gestão passada.

Enquanto isso, fazemos correntes de solidariedade, catamos roupas, águas e alimentos não perecíveis, porque somos solidários. E queremos dizer, de algum modo, que as pessoas que perderam toda a família não estão sós. Pode até ser que a família da jovem negra que vagava entre caixões não fosse a família das propagandas de margarina. Uns podiam estar de mal de outros, acontece. Laço de sangue não obriga ninguém a se amar. Mas eram referências. Essas personagens, como a jovem negra, terão de partir do zero sem nascer de novo. Pelo contrário: renascem da morte, fênix forçadas, e seguirão, sabe-se lá como. Uma espécie de amnésia às avessas, porque terão de apagar tudo o que servia de baliza, bem ou mal. A própria reconstrução, difícil mas não impossível, acontecerá. É da nossa natureza seguir em frente assim que as águas abaixam.

11 comentários:

  1. Puxa vida.
    Fiquei bem chateado no dia primeiro. Claro, uma tragédia dessas não tem como deixar alguém feliz. Mas ainda por cima havia conhecidos meus em Ilha Grande, na praia do lado. E eu não consegui entrar em contato até o dia 2. Fiquei com o coração na mão.
    Estavam bem.
    Fiquei feliz, é claro, mas acabei vendo todas as notícias envolvidas. Ficou um gosto amargo entalado na garganta.

    Tristeza.

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  2. Pois é, Cauê. Eu também achei que tinha amigos por lá (não estavam). E tenho amigos que têm casa em Paraitinga, que foi coberta pelas águas. Terror total.

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  3. o q mais me choca nessa tragédia é o improviso no brasil. depois q as pessoas gastam o dinheiro de uma vida em uma casa vem um sistema de governo dizer q lá não podia e q eles têm q sair. ninguém evita nada e depois largam todos na mão. como o caso de quem comprou um apartamento no palace e até hj não ganhou a indenização. aqui é sempre assim, não se previne nada. campos do jordão foi a mesma coisa. os hotéis desejando ardentemente muita qualidade nos serviços de copeiras e camareiras, esquecendo q elas iam morar onde dava e onde todo mundo ia, em um barranco. toda a cidade perdeu por mais de um ano com os turistas fugindo de lá depois das mortes e deslizamentos. se tivessem organizado com a prefeitura casas populares para os profissionais do hotel, nada disso teria acontecido. sim, a natureza é dura, a mudança do clima tem sido cruel, mas a precariedade do país q tanto cobra de impostos é triste, tristíssima.

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  4. Que dó que deu de ver a matriz de São Luiz do Paraitinga desmoronando e metade da cidade destruída. Tomara que eles consigam se reerguer por sua força cultural,é uma cidadezinha tão simpática, lamentável.
    E de resto, fazer o quê, viver é muito perigoso, já disse Guimarães Rosa, acho que a máxima não excluia as férias nem as festas de final de ano.

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  5. Belo texto Mário. Mesmo o Brasil começando o ano com toda essa tragédia, desejo a você um excelente ano, foi ótimo conhecer seu blog no ano que passou. Quanto a tragédia, é uma repetição de outras que tem acontecido em nosso País,porém, depois que as águas baixam a administração pública esquece tudo, os meios de comunicação se calam sobre o assunto, a vida continua até a próxima para nos comover novamente e nos tonar mais solidários,acho que o povo brasileiro é solidário. O Brasil precisa planejar melhor e cuidar mais da organização das cidades, afinal, tem condições e conhecimento para isso. Acho que o problema, é que quem mais sofre com esse tipo de tragédia é a população mais pobre, mas, já começou a aintingir alguns com mais posse. Enfim, vamos enfrentar 2010, espero que com melhores notícias. Edi

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  6. "instala-se um terrorista dentro de nós, uma dor-bomba que ameaça explodir tudo que seja sinônimo de alegria ao redor" tudo prosa serve bem ao drama que desejas contar e contou , com tristeza, e talento com as palavras

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  7. Sr Mario...
    Pensar nas pessoas, é isso que importa. As coisas desaparecem e alguém trata de encontrá-las e reconstruir o que pode ser reconstruido. Gente nao, gente se vai e nao volta. Belo texto, continue assim pensando sempre nas pessoas, feliz 2010, ou o que resta dele. Filó

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  8. oi mário, fico pensando que hoje é dia de Reis e numa cidade como Sao Luiz do Paraitinga, religiosa que é, a coisa pega. Tô longe, mas pensando na Alice e no Jô, no Emídio, no Marcao e todos os amigos que um dia largaram a cidade grande e foram viver lá. E como você e tantos outros, tô com o coracao bem pequeno com essa situacao dos que perderam suas casas, suas fotos, documentos, uma parte da própria história.

    Vamos desde já torcer pra que a situacao melhore, porque se esse comeco de ano for só uma amostra do que vem por aí...

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  9. Vi ontem um documentário dos anos 80 chamado "Koyaanisqatsi", que, em Hopi, significa "a vida fora de equilíbrio". O que achei que pudesse ser um prenúncio das tragédias ambientais e do desenvolvimento "insustentável" foi ainda mais assustador: a dimensão dos problemas nessas duas décadas cresceu gigantescamente. Vendo o filme, parece inimaginável o nível a que chegamos em tão pouco tempo. Ao que parece, nem a velha máxima da água batendo na bunda está adiantando mais pra conscientizar as pessoas. E agora, José?

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  10. Perfeito o seu texto. O pior é quem conhece a cidade ver a destruição de São Luiz. A cidade é uma graça, o povo é super acolhedor e festivo. Em nosso país, senhores, infelizmente mantemos a poética da dissimulação: enquanto nada dá errado, para quê gastar neurônios com preocupações tolas? Depois que algo sério acontece, o passo seguinte é achar no mínimo um culpado que será crucificado por alguns dias, mas depois de passada atempestade terá algum tipo de compensação. É isso. De tudo, sei do seguinte: São Luiz do Paraitinga merece ser reconstruída. Mas desastres semelhantes devem ser previstos. Antecipados.

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