Por um instante, tive a impressão que o Luiz Megale, da Band News FM, estava com a dicção péssima. Zilda Arns, vítima do terremoto no Haiti? Zilda Arns vivia batendo perna por aí, eu sei, agitando a Pastoral da Criança, pintando e bordando pra ajudar as pessoas carentes, fazendo aquele tipo de ação que tá meio fora de moda e não rende foto em revista de celebridade. Mas... Haiti? Tirando os soldados, que são obrigados, e o Nelson Jobim, que é exibido, quem mais vai pro Haiti por vontade própria? Acho que nem o Caetano foi, quando compôs aquela música dele... "Haiti", ora pois.
Zilda Arns foi. Estava lá a trabalho. Pouco antes do terremoto, estava na embaixada - que sofreu com a tragédia, mas não ruiu. A morte de dona Zilda choca, chateia e nos deixa assim com uma cara de quem - caso encontre Deus no elevador ou na padaria - vai dizer umas boas verdades. Se bem que Ele já deve estar ouvindo umas e outras da própria Zilda - sem arroubos, sem escândalo, mas direta. "Francamente, Deus, isso lá é hora?"
Nunca encontrei dona Zilda nem tenho experiências edificantes pra relatar sobre ela. Uma vez, em 2002, quase a entrevistei, mas o frila rodou e a entrevista foi pro espaço. Tinha dela a mesma boa impressão que todos os brasileiros - livres de qualquer amarra ideológica nessa hora. Zilda era do bem, se podemos resumir assim tão brevemente.
Devia ter seus defeitos, ai dela se não os tivesse. Seus momentos de impaciência e suas teimosias. E daí? Nós também temos as nossas e não saímos fazendo boas ações pra deus e o mundo. Na minha cabeça, dona Zilda era e sempre foi a irmã do dom Paulo Evaristo. Da família, foi ele quem eu 'conheci' primeiro, pelos noticiários e pela admiração crescente. Junto com o rabino Henry Sobel e com o reverendo James Wright, dom Paulo foi o lastro de moralidade cívica que nos manteve à tona nos anos do regime militar.
No tempo de dom Paulo - que pertencia à hoje atacada e ridicularizada corrente da Teologia da Libertação - a Igreja desceu do pedestal, Jesus veio à Terra e Nossa Senhora catou lixo com os pobres. Era uma igreja crível, mas as forças da repressão - abençoadas pelo papa, aliás - mandaram brasa. Dom Paulo foi aposentado e calou-se. Contestar saiu de moda. E o homem, na necessidade brutal de algo que explique o inexplicável, preferiu apelar para um Deus etéreo, transfigurado em livros de auto-ajuda e padres-orelhudos-cantores.
De certa maneira, dona Zilda era a memória viva do tempo em que Paulo Evaristo botava pra quebrar. Mas ela só começou a aparecer depois, bem depois... Dela, sabia-se pouco. Ou eu sabia pouco. Sempre achei que fosse freira. Tinha carinha de freira. Não era. Parece que teve 3 filhos. Que importa o que eu sabia ou não de Zilda Arns? Vou ficar sabendo agora, com os noticiários infinitos. Talvez até a Caras publique alguma coisa sobre ela, numa página que sobrou entre o câncer da apresentadora e o novo namorado gay da atriz lésbica.
Zilda Arns parecia decidida, determinada e coerente. Tão coerente, que não morreu em Paris ou a caminho de uma convenção sobre miseráveis em alguma capital da Europa rica. Estava em Porto Príncipe, sujando o pé na lama e vendo o miserê que reina no país mais pobre das Américas.
País maroto, meia ilha (dividida em condomínio com a República Dominicana), o Haiti roubou a cena de Los Angeles: enquanto todo mundo esperava o Big One, o terremoto que vai transformar a Califórnia num poeirão só, Haiti veio pelo acostamento e entrou de sola na desgraceira. Destruiu o que nem construído estava. Matou quem já vivia abaixo da linha da miséria. Oficializou-se a ruína que o país tinha virado muito antes que qualquer pedacinho de terra tremesse.
Zilda Arns estava lá, viu tudo isso e levou, para uma hipotética vida eterna, a imagem dos pobres que ela passou a vida tentando ajudar.
Oi, Mario,
ResponderExcluirUm amigo me enviou o link para o seu texto. Você disse o que eu não consegui dizer na hora do choque e do luto pela morte de D. Zilda Arns. Parabéns.
Posso linkar esse texto no meu post sobre a morte dela?
Nina, pode linkar, sim. Mas cita a fonte... rs rs... Obrigado.
ResponderExcluirOpa, citar a fonte sempre! Por isso, aliás, o link e não uma cópia do texto.
ResponderExcluirOlha lá!
E mais uma vez, parabéns pelo ótimo texto (este e outros).
Dom Paulo disse: "Não podemos perder a esperança". Confesso que não tenho dado conta de tanta realidade. Que o trabalho e a alma de Da. Zilda continuem a dar frutos.
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ResponderExcluirOntem na reprise do Roda Viva de 2001, dona Zilda contava que foi criticada à esquerda por querer fazer o papel do governo e à direita, por não privilegiar a fé e a evangelização.
ResponderExcluirA ambos ela disse que enquanto eles pensavam assim. deixavam de ajudar crianças que estavam morrendo de desnutrição por pura negligênica e falta de amparo.
Fazer a critica e manter posições ortodozas é comodo, levam ao imobilismo sem culpa.
Zilda deu na cara dessas pessoas mostrando que muita coisa poderia ser feita somente com conhecimento, capacidade de articulação, educação e boa vontade.
Foi uma intelectual orgânica, uma cristã radical.
Quando vejo os indices de mortalidade infantil despencarem e e o IDH brasileiro se elevar ano a ano, penso que valeu a pena minha geração lutar, criticar, sonhar, embora no fundo nem a gente mesmo acreditasse que o pudessemos ver o Brasil mudar tanto e para melhor.
Ao colocar a mão na massa, Dona Zilda alimentou a nossa fé na mudança.
Tomara que o espirito dela continue pairando sobre os corações haitianos, que mais do que nunca agora, como disse D, Paulo, não podem perder a esperança.
Isso fará alguém olhar para o que deve ser olhado? Ou essas manchetes só vão embrulhar os peixes da semana que vem na feira? Espero estar vivo pra ver os bens que vêm dos males.
ResponderExcluirPois é... Zilda Arns fez sua parte e um pouco mais. Claro que muitos vão esquecer assim que vier a próxima péssima notícia, mas a vida é assim - nem todo mundo lembra... Os poucos que lembram (e tomara que nem sejam tão poucos assim) farão a diferença.
ResponderExcluirParabéns, muito bom seu texto !!! :-)
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