quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Memória dos guarda-chuvas


Toda vez que chove na Avenida Paulista, eu lembro de uma conversa que tive no comecinho dos anos 90 com um amigo querido, Helinho Belik (que, como diz o Otávio Martins, já passou pro andar de cima). O Helinho morava em Nova York e chamou a minha atenção para os vendedores de guarda-chuva que brotavam do solo da Broadway a cada vez que chovia. Brotavam já carregados com os "five dolar umbrellas" - e aquilo pra mim foi a revelação de um admirável mundo novo, um mundo onde eu não precisaria mais prestar atenção no guarda-chuva, porque poderia comprar baratinho quando precisasse...


Tão antigo quanto lembrar do Michael Jackson preto ou entender o que significa a expressão "vira o disco", tratar um guarda-chuva como um bem de quase luxo é a maior deduragem de idade. É claro que ajudava muito não ter nascido em família rica (muito pelo contrário), mas que guarda-chuvas e sombrinhas eram "bens", eram mesmo. Tinham valor, tinham um peso na vida de alguém - você ter o "seu" guarda-chuva era tão bacana quanto, pros meninos, usar o primeiro par de calças compridas (ops, outra deduragem etária).


Se a felicidade dependesse disso, estaríamos resolvidos. Guarda-chuvas hoje são comprados na porta do cinema, do banco, do shopping... Custam baratinho e duram uma chuva, no máximo duas. E, provando que somos mesmo uma cópia mal tirada de Nova York, os vendedores brotam do chão antes mesmo que a primeira gota de chuva atinja o asfalto. Chega a ser fascinante: onde eles guardam aqueles carrinhos lotados de sombrinhas, guarda-chuvas enormes, de estampas variadas? Quem será o guardião das umbrellas?


Assim como o guarda-chuva, os relógios de pulso perderam muito de seu prestígio como "bem de valor". Estou falando dos relógios que nós, os mortais que pagam imposto, jantar e viagem, usamos. Não tem nada a ver com a coleção de Rolex ou Bulgaris dos colunáveis. Lembro que o Seiko ou o Omega eram marcas que meu pai e meus tios exibiam como troféus. Era um degrau a mais na precária escala social dos anos 60. Relógios "de marca" eram bens que os pais deixavam de herança para o filho mais velho ou que, em ano de décimo terceiro bom, premiavam quem passava de ano na escola (meu Deus, a gente corria o risco de repetir de ano! definitvamente, estou um dinossauro).


Atualmente, relógios de qualquer marca - de preferência, badalada, claro - podem ser comprados por uns trocados nos muquifinhos dos shoppings Coréia . A Suíça ainda leva a sério seus mecanismos que marcam o tempo, mas o pulo do gato, quem deu foi a China. Lá se pode comprar qualquer marca - e depois das últimas olímpíadas, tem muita gente exibindo dezenas de rolex e bulgaris autenticamente falsos, todos nascidos em alguma fabriqueta subterrânea da velha terra de Mao. É claro que muita gente prefere o legalizado e investe os tubos num Rolex autêntico (acho que foi o caso do Luciano Huck, lembram?), mas isso também não é mais fundamental.


O que os pais vão deixar de herança pro filho mais velho? Um Seiko de araque, que funciona a bateria e custa tão barato que nem vale a pena comprar uma bateria nova? Posso estar viajando na maionese, mas esses objetos hoje descartáveis serviam de baliza para nosso crescimento. Eram um prêmio, um sinal de status, uma medalha no peito do escoteiro mirim... Ele não nos extraía da massa, mas nos estimulava a prosseguir mais firmes no estudo - quem sabe, um relógio melhor? Aprendíamos a prestar mais atenção nas coisas e a não perder mais o guarda-chuva que a madrinha deu no Natal... Nossa, se continuar nessa linha de raciocínio vou acabar pedindo uma bolsa família com efeito retroativo...

9 comentários:

  1. Mário,

    Bem sacado o texto sobre os guarda-chuvas que surgem misteriosamente na cidade e duram apenas uma ou duas chuvas. Quando eu era criança, no século passado, havia os consertadores de guarda-chuvas que, assim como os amoladores de faca, passavam regularmente pelo bairro. Toda família sempre tinha um guarda-chuva para consertar e uma faca para amolar.

    Uma faca bem amolada às vezes acabava espetada no bucho de um marido suspeito de infidelidade. Mas, o mais comum era veneno de rato: o pobre suspeito tinha uma morte horrível, sangrando pela boca e com dores abdominais insuportáveis. Era uma agonia lenta, como uma garoa paulistana.

    Tempos interessantes esses do passado. Mas falávamos de guarda-chuvas, não é mesmo?

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  2. Ainda tem um afiador de facas no Bexiga! É a coisa mais surreal, aquele velhinho miudinho arrastando aquele carrinho pelas ruas hoje movimentadas do bairro, tocando o apito pra avisar as pessoas... E ele amola direitinho, eu mesmo já usei os serviços... Mas duvido que tenha um "herdeiro"...

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  3. Poxa... lembrei da primeira sombrinha que tive! Naquele passado longínquo, chorei, esperneei, infernizei a vida da minha mãe até ela juntar muitos trocados e comprar uma sombrinha para mim. Linda! Vermelha! Mas, ó azar, no mesmo dia em que ganhei o presente, chegou à cidade uns malucos da TFP que, aos berros, sacudiam freneticamente aquele estandarte... vermelho! Pronto... Nunca consegui usar aquela sombrinha. Fiquei com tanto medo daquela gente que por muitos anos associei o vermelho à TFP. Ironia.

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  4. Eu tinha 15 anos e trabalhava como menor estagiário no Banco do Brasil do centro... Um dia, a cidade foi tomada pela TFP e seus estandartes vermelhos... Eu achei que os comunistas tinham tomado o poder! Vermelho!
    (depois, o povo do banco me explicou a situação)

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  5. Caros:
    Chamar guarda-chuva de "sombrinha", isso sim é entregar a idade - quem fala isso hoje?
    Mas, falando do fenômeno dos vendedores que brotam do chão à primeira nuvem escura, pelo menos estamos globalizados. O mesmo se repete, esteja vc em Nova York, Bombaim, Cannes, Paris...
    Será que eles formam um sindicato internacional?
    Agora - a dúvida procede: onde eles guardam tudo isso em dias de sol? E como chegam tão rápido às estações do metrô? Logística invejável...
    Ah, e antes que eu esqueça: boa lembrança, a do Helinho Belik. Lembro muito dele às vezes. Saudade!
    Neusa

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  6. Vivemos nossa juventude num país pobre, provinciano, de economia fechada, onde empresários incompetentes eram premiados com reserva de mercado. Onde sombrinha era artigo de luxo, pois a produção nacional era nula e a taxação sobre importados absurda.
    As roupas- sobretudo as de inverno-e sapatos eram feips e caríssimos,os trabalhadores pobres andavam muito mal agasalhados e vestidos. E como São paulo era fria naqueles tempos!
    Hoje as empregadas domésticas paulistanas desfilam seu guarda-roupa com a maior dignidade, t~em os eletrodomésticos de seus sonhos.
    Lembro de juntar renda minha de das minhas duas irmãs e não dar para fazer crediário mo Mappin para comprar o aparelho de som que queríamos.
    Salário minimo, meu primeiro salário, era uma piada.
    Ainda bem que o Brasil mudou,q ue o relogio seiko e a sombrinha japonesa viraram pó.
    Só lamento que com eles a escola pública também tenha ido para o espaço.

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  7. Ester, até onde eu saiba o salário mínimo continua uma piada.
    Vc me fez lembrar da Piter... alguém lembra da Loja Piter? Ou era Lojas Piter? Se era, porque o plural? Era o máximo da modernidade, mas depois virou a maior carne de vaca... mais ou menos na época em que eu comprei um macacão de jeans... eu me sentia o próprio Tommy...

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  8. O poder de compra do salário minimo hoje é infinitamente maior, Mario, os preços baixaram, carne e frango não são mais artigos de luxo, até por dez real você compra uma camiseta bonitinha e de qualdade, por vinte um sapatinho que dá para usar na boa, eletroeletronicos, eletrodomesticos é tudo é mais acessivel. Carro, até casa própria é muito mais fácil de adquirir.
    Há credito, nos anos setenta e oitenta, não se parcelava nada. Hoje nem que for a perder de vista, se pode comprar. Antes não havia essa possibildiade.
    Acompanhei a diferença que era ser bancária nos anos oitenta e doméstica nos noventa. Minha empregada tinha um padrao de consumo muito melhor do que o meu na década passada.
    A gente ralou para caramba, pobre hoje rala muito menos.
    Há muitos programas de estágio para Universitários, quando a gente estudava tinha que encarar emprego mesmo, não havia outra alternativa, os estágios eram poucos e se ganhava muito mal, o Leon éestágiário da Secretaria E. do Meio Ambiente e até guarda dinehiro.
    Entre em apto de conjunto habitacional e verá que eles tem de tudo.
    Comprar máquina lavar na minha casa foi um acontecimento, telefone, então, era para poucos.
    A Pitter era muito cara pra mim (rs). Mas a Mesbla tinha coisas legais.

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  9. Ester, quantos carnês da Piter eu tive que fazer pro tal macacão.. nossa!
    Mas só pra rebater algumas coisas... A questão dos guarda-chuvas e relógios made in China são mais complexas. Nos livros "Ilícito", de Moisés Naim (Editora Jorge Zahar), e "McMafia", de Misha Glenny (Cia das Letras), dá pra entender o mecanismo desse contrabando mundial, que une no mesmo fio a sombrinha da Paulista aos fuzis AK do Cazaquistão. São livros bem legais, recomendo.
    Agora que pobre continua ralando muito, continua. Os estágios são mal pagos e exploram mão de obra juvenil. Penso mesmo que, nesse modelo e com o mesmo esquema que eu tinha quando jovem (órfão de pai, arrimo de família, morando no orifício anal da zona norte), eu dificilmente conseguiria fazer os tais "cursos de jornalismo" que as empresas dão. Tinha que trabalhar, senão... Sem traumas, nem choques, só a constatação que esses órgãos de comunicação perderiam um grande talento... rs rs

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