quinta-feira, 8 de julho de 2010

Imitação da Arte



É de arrepiar a sinopse do filme "O medo do goleiro diante do pênalti", que Win Wenders dirigiu em 1971: "Baseado em obra de Peter Handke, o filme é centrado na figura do goleiro Joseph Bloch. Após ser substituído em uma partida, ele deixa o campo e passa a noite com uma atendente de cinema. Sem motivos, ele estrangula a moça na manhã seguinte".





Win Wenders, obviamente, não sabia nem poderia prever a existência do Goleiro Bruno do Flamengo - o rapaz perdeu sobrenome e ganhou essa marca registrada ao protagonizar uma das mais macabras tramas registradas pela imprensa nacional. Uma trama que ganha detalhes cada vez mais sórdidos a cada anoitecer e que requenta, de quebra, os preconceitos nossos de cada dia. Win Wenders deve ter feito um filme denso, como é em geral sua obra (eu não lembro de ter visto, só guardei o título, lindo). Mas nada que ele pusesse no roteiro no começo dos anos 70 chegaria aos pés da assustadora realidade que se revela.

Ao contrário de Wenders, que usou sua obra para discutir a coexistência nem sempre pacífica entre homem e sociedade, o goleiro Bruno devia acreditar que a vida era outro tipo de cinema - aquele dos filmes de violência gratuita, em que se degolam pessoas como se passa manteiga no pãozinho. Bruno e seus amigos - Macarrão, Coxinha, Paulista e outros de apelidos semelhantes - enxergaram a paranaense Eliza como uma figurante qualquer num filme do Steven Seagall ou do Jean-Claude Van Damme.


A figurante que, no começo, era apenas uma moça gostosa, disposta a se divertir e levar diversão aos jogadores - uma maria-chuteira, como dizem no futebol - resolveu ter fala no filme projetado na cabeça de Bruno e sua turma. Já não bastava ter engravidado? Eliza e Bruno tiveram suas noites de farra e da folia nasceu um garoto, cuja paternidade ela buscava reconhecer. Não devem ter sido conversas muito amenas, essas de Bruno e da possível mãe de seu filho. Eliza devia jogar pesado, como em geral jogam as meninas que se envolvem com esses caras.


Tudo poderia ter acabado em relativa paz. Ele pagaria a pensão do moleque, a mulher faria caras e bocas, mas o aceitaria de volta, e Eliza continuaria sua saga de colecionadora de fotos com jogadores. Aqui e ali surgem comentários sobre a vida assanhada da moça, que teria feito filme pornô e tudo. É como se cada cena de sexo reduzisse a culpa de seus assassinos e explicasse, por si só, o crime.

O erro trágico de Bruno e Eliza foi ter seus caminhos misturados aos de figuras ensandecidas e sem a menor noção de limite entre vida e ficção. A figurante deu problema? Nós a matamos e atiramos seu corpo aos cães. Literalmente. O que passa na cabeça de alguém que faz isso? Eu tento imaginar o processo mental - sim, há um - que leva alguém a considerar as cenas de um filme de ação suficientemente plausíveis para ser colocadas em prática. Matar alguém já está além. Matar friamente, então. E o que veio a seguir, nem se fala. O que espanta é que não foi um cara sozinho que fez. Havia um grupo de homens em torno de uma moça. E será que nenhum deles por um instante que fosse pensou que aquilo poderia dar algum problema? Ou será que ele viu a cena como mais um filme de ação, em que o prédio explode e ninguém quer saber quem morreu ou quem matou.


Para completar o quadro de horror, o pai da vítima agora foi apontado como possível estuprador de menores no passado. E a mãe da moça morta, a mãe que sumira, voltou das brumas de avalon para reivindicar a posse do menino, agora um órfão que certamente terá direito à pensão do goleiro. Há sempre um interesse esquivo fazendo pulsar certos corações.

E como se nada disso bastasse, o mundo do twitter se divide entre quem considere Bruno perseguido por que é preto e ex-favelado ou entre quem veja no caso inspiração para as mais insólitas piadas. No começo, algumas até que foram engraçadas - mas os detalhes surgidos dia a dia mostram que a turma de Bruno não estava pra brincadeira. E o riso, que já era amarelo, virou esgar.



Sem querer, quem melhor resumiu a trama de horror foi o menor que entregou o crime todo. Quando saiu do bagageiro e surpreendeu a moça, na van do goleiro, o menor teria olhado pra ela e dito: "Perdeu, Eliza". Tantas outras Elizas, que empataram ou ganharam o jogo de virada, estão por aí, levando suas vidas, apresentando seus programas, esquiando em suas estações de esqui preferidas. Eliza acabou despedaçada num canil. Pois é. Eliza perdeu e perdeu feio. Foi seu erro. Até pra morrer é preciso não cometer certos pecados.

10 comentários:

  1. Caro Mário,
    Mais um de seus brilhantes textos sobre a sordidez da alma de alguns homens. Escrevi hoje um texto sobre o mesmo assunto, mas o seu é, mais uma vez, imbatível.
    Grande abraço.

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  2. Paulo, obrigado! Mas o seu blog também tem uma excelente análise, aproximando o goleiro Bruno de Tchecov. Ficaram curiosos? Leiam:
    http://paradiseduluoz.blogspot.com/

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Eu não acho que o Bruno seja "perseguido e favelado", mas anucniaram que o cara era culpado antes de apresentar as provas, o inquérito estava parecendo piada, as duas polícias, de Minas e Rio brigando para ver quem aparecia mais na tv, que coisa mais feia, odeio gente vaidosa.
    E acho que tratam gente branca e rica diferente de preto pobre que subiu na vida, tão óbvio, isso. Queria ver se fosse o Ronaldo se o babado seria esse. É preto e subiu na vida, mais ficou milionário, o tratamento embranquece.
    Para mim a Elisa sabe muito mais e estava chantageando, convenhamos que pelo que ele ganha, matar a moça por causa da pensão soa esquisito.
    E a turma dele é da pesada, quando ela deu aquele depoimento, deixou claro que podoeria contar muito mais. Essa é a minha teoria.
    O que pega é ver que se a coisa não fosse tão feia, muita gente estava dando razão para a morte da moça, tipo, ela é uma vagabunda mesmo. A vida de uma mulher ainda vale muito pouca coisa nesse mundo.

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  5. Maria Ester, sua teoria até que faz sentido. A moça deve ter ameaçado contar mais coisas... pelo menos, a gente pensa assim que é pra encontrar uma razão que seja pro crime bárbaro. Se foi pelo motivo apresentado, fica ainda mais selvagem.
    Mas discordo do tom feminista. Não é só vida de mulher que vale pouco, não. Esta semana, um motorista bêbado perdeu o controle da kombi e matou 3 homens na Imigrantes. Foi autuado e liberado depois de pagar 1.200 reais de fiança. 1.200: 400 reais por vida. Foi a pechincha do ano.

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  6. Tem diferença, Mario, o lance da mulher ser culpada por ser sedutora vem dos tempos de Adão, a sociedade machista odeia o fascínio das mulheres, mulher é cobra, tem uma contradição profunda que é o fato de obter o objeto mas ser dominado por ele, a historia da vagina dentada, do Freud. Os homens se sentem incapazes, perdem a força como Sansão por culpa de Dalila.
    A mulher é uma força da natureza que os homens não conseguem dominar e no limite tentam exterminá-la para se ver livre do próprio incontrolável desejo.
    A sociedade patriarcal e machista está muito viva, a impunidade que existe na sociedade no caso da mulher é justificada pela sociedade.
    Ninguem acha certo a umpunidade ao motorista bêbado que voce citou, ninguem veladamente vai defendê-lo com fizeram com Bruno, no assassinato de Eliza.

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  7. A bestialidade humana entristece mesmo, Rô.

    Ester, entendo vc, mas preconceito não se combate só com duas leis e um par de algemas. Leva tempo. O que não se pode é entregar os pontos. O fato de defenderem veladamente o Bruno é já um sinal - o Doca Street foi defendido às claras, por ter matado uma mulher de comportamento inusual. Avança-se, pouco, mas se avança.

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  8. Oi, Mário!
    Estou procurando seu e-mail. Envia p mim, por favor. O meu é anazettel@yahoo.com.br . Preciso te falar sobre "Natureza Morta" que pretendo utilizar no mestrado. Grata. Ana Zettel

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  9. Oi Mário, mais um texto excelente. A vida tem coisas tão sórdidas, que nem conseguimos imaginar a cena. Esse é mais um exemplo da violência contra a mulher no Brasil, claro, não só por aqui, e de como o jogo do "vale tudo" para conseguir um pouco de fama ou subir na escala social pode se dramático. Parabéns pela análise, realmente, centrada na loucura desse sistema perverso. Edi

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