
De nada adiantou ter sido um leitor voraz de Agatha Christie, Conan Doyle ou P. D. James. Nenhum autor de romance policial chegaria ao esmero do crime no Brasil. Aqui, Hercule Poirot, Miss Marple, Sherlock Holmes e o inspetor Adam Dalgliesh teriam de passar suas tardes jogando biriba ou tomando chá com torradas. O Brasil, reconheçamos, atingiu a perfeição no mundo do crime. Aqui, pode-se matar uma pessoa, um outro ser humano, e nem é preciso manter o crime em segredo. Todos saberão quem fez o que com quem, e ficará tudo por isso mesmo. Basta atropelar alguém. Simples assim.
Foi o que aconteceu há algumas semanas na Rodovia dos Imigrantes, quando um motorista com os reflexos alterados pelo álcool perdeu o controle da kombi e atingiu três pessoas no acostamento, matando-as na hora. Foi preso, confessou que tinha bebido, pagou uma fiança de 1.200 reais e saiu, pra responder o processo em liberdade. Gente, 1.200 reais dá 400 reais por vida tirada. Nem o Imposto de Renda cobra tão pouco por um dependente.
Na semana passada, foi a triste vez de a atriz Cissa Guimarães ser atingida pela tragédia. Seu filho Rafael, de 18 anos, foi atropelado e morto dentro de um túnel no Rio de Janeiro, quando andava de skate com dois amigos. Era madrugada, o túnel estava fechado para o trânsito de veículos e, teoricamente, não haveria perigo para os skatistas a não ser um assalto inocente. Dois carros, pelo jeito disputando um racha, ignoraram os avisos de interdição e entraram no túnel. "O menino não saiu da frente do carro e manobrou pro nosso lado", explicou o passageiro do carro que atingiu Rafael. Sobre o fato de estar num local proibido para carros, nenhuma palavra.
Depois, ficamos todos sabendo que os dois policiais que interceptaram o carro assassino não perceberam o vidro estilhaçado, o capô amassado, o farol pendurado - e talvez uma ou outra mancha de sangue. Os PMs teriam pedido 10 mil reais pra sofrerem de amnésia. Teria dado tudo certo, caso Rafael não fosse filho de um músico respeitado e de uma atriz conhecida, que até dias atrás anunciava o torpedão da copa do mundo nos intervalos dos jogos. Se Rafael fosse filho da tiazinha que vende coco na praia de Copacabana, talvez o golpe da amnésia tivesse funcionado.
Cá entre nós, a participação dos PMs corruptos é quase que só um detalhe numa história por si escabrosa. O que me impressiona sempre que leio sobre acidentes de trânsito envolvendo mortes é justamente o sucateamento que se faz no Brasil dos seres humanos. Acidentes acontecem. Máquinas podem perder o controle. Todo mundo tem sua hora e dela ninguém escapa. A fartura de lugares comuns deixa claro que nem tudo é crime.
Quando uma pessoa bebe além da conta, sai em alta disparada, ignora um aviso de "proibido entrar" ou a placa de contra-mão... bem, se provocar um acidente, essa pessoa não pode ser tratada como alguém que, coitada, deu sopa pro azar. É crime doloso, sim. Você, deliberadamente, toma uma atitude que pode ter consequências fatais, isso é crime. Pode ter atenuantes? De repente, sim. Mas não se pode dizer que foi sem querer.
Ou pior ainda, não se pode acusar a vítima de ter entrado na frente do carro, impossibilitando uma manobra. Rafael, o filho da Cissa Guimarães, estava em um local onde não devia passar carro, ponto. E tem mais: o sujeito que estava ao volante tinha sob o pé direito o comando do freio. E nas mãos, o volante. Era só frear ou desviar. Bateria o carro, mas não mataria ninguém.
A situação beira o Cinismo Absoluto quando sabemos que há regras muito rígidas dominando o código de trânsito brasileiro. Se eu não fizer a tal da avaliação de poluentes do meu carro novo pagarei multa. Se eu falar ao celular enquanto dirijo, pagarei multa. Se eu tomar três e não um copo de chope, pagarei uma multa altíssima. São regras absurdas? De jeito nenhum. O absurdo é eu perceber que se atropelar e matar alguém, pagarei uma fiança e ficarei em casa. Poderei até dirigir! Quem morreu, afinal, foi o outro. Foi maus.