quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Os pigmeus do bulevar


Está na primeira página do Estadão de hoje uma notícia que a Vejinha já tinha cantado há cerca de dois meses: a prefeitura, capitaneada por vocês-sabem-quem, fechou diversos albergues para mendigos e miseráveis - até o momento, foram cerca de 700 leitos apagados do mapa. A eles, vão se juntar mais 400 leitos, brevemente. Ou seja, com uma canetada, tira-se o direito de mil pessoas dormirem com um mínimo de decência. Todos esses albergues ficam na região central da cidade - Glicério e arredores - onde vivem (se é que se pode usar o verbo) quase todos os mendigos paulistanos.

A ideia, à qual a horda de mulambentos teimou em não aderir, era muito simples: fechados os albergues do centro, os miseráveis que se resolvam lá pros lados da zona leste ou mais longe ainda. Acontece que muitos desses mendigos vivem de catar papelão na rua. Outros fuçam o lixo dos restaurantes e lanchonetes, à procura de um resto de comida. É muito mais fácil encontrar papelão e resto de comida na 25 de Março do que em Guaianazes. Outra prova da insensibilidade dos famélicos é que eles evitam bairros distantes, porque isso implica em gastar passagem de ônibus. R$ 2,70 pode não ser muita coisa para pessoas como vocês-sabem-quem, mas para quem sobrevive às custas dos dejetos consumistas é um dinheirão.

Como numa conjunção astral desfavorável, aconteceu o que "ele" (vocês-sabem-quem) não previu. Sem ter onde repousar os ossos e avessos à ideia de morar na periferia, os pobres se espalharam pela cidade mesmo. E o que se vê é um projeto mal acabado de apocalipse social, com famílias inteiras abrigadas em praças, sob marquises, dentro de caixas eletrônicos ou debaixo de viadutos. Das ruas do centro chegaram à Paulista e, de lá, à avenida Brasil, rua Oscar Freire e outros points nobres. Foi só nesse momento que a classe média - a mesma que se orgulha de pagar impostos e tem ojeriza de presidente analfabeto - despertou para o "problema social".

Paralelo a isso, ocorre o festival gastronômico, já previsto por este blog, cujo prato de resistência é Kassab Frito à Moda do Serra. Não interessa mais que o apagado alcaide paulistano conquiste votos. Chega de farra, Gilberto, deixa a política pros adultos. Assim, os mesmos jornais e revistas que, não faz muito tempo, só tinham elogios para a administração atual, agora descobriram seus defeitos. Antes tarde do que nunca, mesmo que por motivos tortos.

No caso dos indivíduos que a empáfia politicamente correta chama de "cidadãos em situação de rua", a crueldade tem um tempero especial. Já faz dois anos que Gilberto, o Alcaide, iniciou a "limpeza" dos albergues. Mas só agora - quando não interessa mais ao Poder e quando a situação incomoda os 'de bem' - é que a coisa vem à tona. Qualquer pessoa que caminhasse pelas ruas nos últimos meses já tinha notado isso. Os moradores de rua multiplicam-se feito gremlins infelizes. Misturam-se todos, agora, nas calçadas - catadores de papel sem abrigo e viciados exilados da cracolândia.

Foi-se o tempo em que Charlie Chaplin cozinhava uma bota para matar a fome e protegia um garoto tão miserável como ele - e, com isso, despertava riso e emoção na mesma medida. A miséria real causa horror, porque está ali, na calçada mais perto de você. Chamá-los de sem-teto é impreciso e frio. O mais correto é o termo inglês, homeless, sem lar. Ou seja, sem um canto na terra que o faça se sentir mais protegido, acarinhado, aquecido na alma. Teto, qualquer marquise de Casas Bahia serve.
É muito provável que o projeto de vocês-sabem-quem fosse apenas afastar para longe a multidão de feios, sujos, desdentados e, acima de tudo, não-eleitores, numa visão muito particular do que seja a revitalização do centro. A canetada fatal tirou desses homens e mulheres a possibilidade de um colchão sob o corpo moído. Tirou também a rara possibilidade de um banho de corpo e roupas. Por isso, cada vez mais, muitos deles caminham por aí espalhando ao redor o cheiro azedo de suor antigo. É, minha gente, os homens fedem. Alguns, por fora.

14 comentários:

  1. Gênio! Sou teu fã!
    Tô esperando ver o Alcaide no SPTV explicando pro Chico Pinheiro q os moradores de rua são os responsáveis pelas enchentes na cidade!

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  2. O Kassab é uma espécie de novo Pitta (o pior é acreditarem nos filhos de Maluf e Serra). Minha pergunta é: o Maluf se queimou essencialmente pelo Pitta? E o Serra, alguém vai se lembrar disso ou precisava ter dito "se o Kassab não for um bom prefeito..."? A vantagem do Pitta, ainda, foi ter sido mais discreto, mais despretensioso, e, claro, ter morrido logo.
    PS: Ótimas as duas últimas frases.

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  3. fazendo uma comparação ruim, qd eu li que levariam para a periferia eu fiquei pensando. meus pais não se mudariam só pq a prefeitura acharia que deveriam ficar melhor instalados na periferia. até poderia ser, mas com os hábitos já arraigados, não mudariam. moradores de ruas ainda criam suas relações. me lembrou tb o filme estamira. a catadora do lixão vai pq gosta, não pq precisa, dorme no lixão, pq lá tem um grupo de amigos, vivem às turras, mas tem uma relação. ela do jeito que está só se sente bem entre os seus pares, afastá-la de lá chega a ser crueldade. a filha inclusive fala q se preocupa, q já tentou, mas desistiu. quem fez essa medida não entende nada de psicologia. beijos, pedrita

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  4. comentando o kiko, o kassab me lembra o jânio q proibiu biquinis nas praias.

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  5. Fascismo! Fascismo! O aprendiz de Mussolini pretende espalhar sua política 'social' para todo o país. Fiquemos alerta!

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  6. Pedrita, não sei, não. Acho que, no caso do Jânio, era representação de um outro tempo, moralista. Já o Kassab parece-me fazer isso com fins eleitoreiros mesmo, uma espécie de mostrar serviço constante, desde o Cidade Limpa. Creio que ele acredita menos no que faz do que o Jânio, o que o torna ainda pior. Entretanto, em ambos os casos, não deixa de ter um fundo de corresponder aos anseios tácitos da tão maravilhosa classe média. O problema (ou a solução) é que, como o Mário apontou, a coisa bateu na porta dessas mesmas pessoas que apoiaram a ditadura. Agora, a população ter ido do desejo moralista ao desejo pela higienização social é que se torna índice do caminho que o Brasil trilha...

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  7. Cidade Limpa foi marketing político. Deu certo.Virou prefeito Patolino.Um fracasso, um idiota, um oportunista.
    O centro da cidade de SP ( onde vivo e trabalho)
    cheira a merda e xixi.
    A cidade + fedida do mundo.
    Sem tetos,nóias e lixo por todo lado.
    Limpeza zero.
    Kassab merecia ser decapitado no Viaduto do Chá.

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  8. Toda vez que eu passo em frente ao "Lustres Yamamura" na Consolação, agradeço a Deus e ao Kassab pelo cidade limpa. Aquela placa me irritava há anos, era invasão de espaço público, desreespeito, uma vergonha.
    Não acho que empresário pode fazer o que bem entender para vender seus produtos, como acontecia. Kassab foi corajoso, mexeu no bolso de gente poderosa como a rede Mc Donalds, bancos redes de farmácias, topou uma briga muito boa para deixar a cidade menos poluida visualmente.
    É otimo poder enxergar as fachados dos sobradinhos da Teodoro Sampaio, o predio da padaria aqui perto de casa surgiu do nada depois que tiraram aquela placa luminosa horrivel da "Panificadora Sagres".
    Na periferia também melhorou muito a paisagem urbana com a redução de placas precárias e feias, não dá para ser contra uma ação como essas.
    Eu apoio o cidade limpa e não sei se a visão igrejeira de deixar as pessoas em "situação de rua" morando no centro da cidade é uma boa, não entendo do assunto. Até os pobres são disputados nessa cidade, aprendi isso quando trabalhei em um projeto com crianças de rua.
    Só sei que fazer de conta que o problema não existe, disperçando os sem-teto para que eles não apareçam, além de desumano, não equaciona o problema.
    Kassab poderia ter a mesma coragem que teve no cidade limpa para tentar soluções inovadoras na área social e muitas outras, mas acho que a inteligência e liderança dele não têm alcance para isso.

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  9. A Lei Cidade Limpa, apesar de seus inegáveis benefícios estéticos, traz no bojo uma coisa que me incomoda profundamente: a cidade ficou sem cor (exceto pelos prédios do Ohtake...). Tá tudo cinza, feinho, tal qual a cara do Alcaide.
    Eu sei que poluição visual é terrível, mas ao mesmo tempo eu acho que cidades são seres vivos e, como tudo que é vivo, tem um lado caótico necessário. Querer organizar demais... sei lá... não me convence muito.
    Mas ninguém até hoje foi fundo nas boas intenções do prefeito ao brigar pela Cidade Limpa. Aí tem.

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  10. Não gosto nada dos monstrengos coloridos do Ohtake. Já o Cidade Limpa fez com que outras cores e formas surgissem na cidade. Cassab não tem politica pública social nenhuma, ele cortou a receitas para alimentação das creches que atendem crianças carentes, em média são dois mil reais para um mes inteiro, as coordenadores estão sem saber o que fazer. Existem técnicas de abordagem e regras para acolhimento da população de rua e a "equipe técnica" do senhor prefeito parece nunca ter tido a menor formação, ou o método é político mesmo, classe média não gosta de ver pobre, vamos mandar para longe. O pior é ver a classe média achando o homem ótimo, o cara não é corajoso coisa nenhuma, é sim um covarde. Ele não precisou de coragem nenhuma para implantar o cidade limpa, teve total apoio da mídia e por aí já é meia batalha ganha, então sem essa de dizer que algum dia este Alcaide como você chama teve coragem para alguma coisa.
    Filó.

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  11. Filó, até quando vc acha que vai o namoro da classe média com o Kassab? eu acho que já começou a fazer água.
    Ester, essa coisa de 'atacar os iguais' é golpe manjado. Depois, eles acertam as contas no churrasco...

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  12. Mário,
    Que belo blog o seu - já tá nos favoritos e virei sempre aqui.
    A lucidez dos seus textos e a sua elagância encantam o leitor.
    Sensibilidade social é algo fora de moda. Vive-se a era do individualismo grotesco, da banalidade a serviço do ego, da frivolização das relações. Daqui a pouco vão chamar os sem teto de "loosers" - a nssa capacidade de importar estupidez parece sem limite. A lamentar o fato de que o discurso da "faxina étnica" do neofascismo ainda encontra enorme ressonância no seio de grande parcela da população - Boris Casoy explicitou como pensa (!?!?!) essa gente em relação aos garis.
    Enquanto isso dezenas de bairros permanecem alagados, as pessoas convivem com esgoto e dejetos e a grande mídia põe a culpa na população, que suja a cidade. E as políticas públicas preventivas? E as políticas emergenciais?
    Bom, mas o Zé Aluvião vai ser presidente e vai consertar o Brasil, não é mesmo?
    Abração!

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  13. Érico, bem vindo!
    E Zé Aluvião é ó-ti-mo!!!!

    Ontem, vc não teve a sensação - vendo a PM jogar gás nos manifestantes diante da prefeitura - que o mundo virou de ponta-cabeça? Eu tive.

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  14. Mário,
    A questão social, como nos tempos de Washington Luís, continua a ser tratada como caso de polícia. E ainda nos pautamos pela outra célebre máxima bigodudo presidente: "governar é abrir estradas" - no caso do Zé Aluvião, acho que o termo correto seria hidrovias - rs, rs, rs.
    Tem um post hilariante sobre esse episódio no blog do professor Hariovaldo Almeida Prado, o reduto dos homens bons e dos devotos de São Serapião. Aliás o blog é ótimo, de matar de rir - o endereço é http://hariprado.wordpress.com/
    Abração!

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