segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Dona Lindu e as nuvens


Fui ao cinema assistir à história de um nordestino que saiu de seu sertão natal, veio pro Sul Maravilha, venceu na vida e ganhou o mundo. Forçando um pouquinho, a sinopse poderia servir tanto a "Lula, o Filho do Brasil" quanto a "O homem que engarrafava nuvens". O primeiro é uma ficção biográfica com ares de documentário e o segundo, um documentário editado com criatividade de uma boa ficção. A diferença é que o segundo emociona.

Pra alegria da imprensa que cria aves de bico comprido, "Lula" está fazendo água nas bilheterias, pelo menos nas salas de público classe média, o mais avesso ao personagem do título. O filme ainda não chegou às camadas populares, com ingressos subsidiados, mas já animou s camelôs piratas. Mesmo assim, está longe de ser 'acusado' de ter caído nas graças da platéia.

Os anti-lula comemoram, como se o filme fosse um veículo de propaganda da candidatura Dilma. Afinal, até o New York Times afirmou isso outro dia. Isso não é dar poder demais a um filme, não? Será que alguém vai sair do cinema tão fascinado pelo que assistiu que mudará os destinos do país através do voto direto? Gente, eu adoro cinema, mas não acho que a sétima arte tenha essa bateria toda, não. Uma novela, que está todo santo dia martelando na cabeça do indivíduo, tem mais chance de 'fazer a cabeça'. E mesmo assim...

"Lula", o filme, está fazendo água porque é ruim. É fraco. Tem um personagem com uma trajetória fascinante nas mãos, mas desvia o foco, disfarça a direção do tiro e acaba acertando o vazio. O filme começou errado pela escolha do diretor. Fábio Barreto não deixa sua marca, não conduz os atores, não dá personalidade ao filme. E, pior, não salva - ou quem sabe, até sublinha - os pontos fracos do roteiro.

A idéia por trás de "Lula" é clara: ganhar dinheiro. Isso não é pecado, nem feio. E justiça seja feita, os Barreto não negam intimidade com o cinema. A produção é caprichada, há ótimos atores em cena, alguns atuando muito bem, como Gloria Pires. Mas falta alma ao filme. Se a ideia foi misturar a trajetória biográfica de Lula (admirável, sob vários aspectos, independente do que se ache dele como político) ao poder emocionante de "Dois filhos de Francisco", lamento informar, mas a receita desandou.

Não é preciso ser Einstein pra saber o motivo. Há sérios problemas de dramaturgia no roteiro de "Lula" - e, os gênios da direção que me perdoem, mas um bom roteiro é fundamental. "Francisco" tinha seu eixo na luta de um pai para transformar os filhos em cantores de sucesso. Há uma saga, há um objetivo, a platéia acompanha aquilo passo a passo. Em "Lula", pra não contar diretamente a história interessante do presidente, optou-se por uma via alternativa, a luta de dona Lindu, sua mãe. Com isso, o personagem Lula esvaziou-se, ficou frouxo na tela... e a mãe não cresceu.
Sertaneja, mãe de uma penca de filhos, maltratada pelo marido alcoólatra, dona Lindu era antes de tudo uma forte. E passou essa determinação para o filho, com diálogos edificantes no leito de morte... Ok. Mas no filme, em nenhum momento, dona Lindu arregaça as mangas e diz: "Luís, agora tu vai ser torneiro mecânico... depois, tu vai ser deputado... oxente, menino, já pensasse em ser presidente?"

Não, não. Dona Lindu apenas queria criar os filhos com honestidade e decência, como boa parte das mães. Dar-se bem, pra ela, poderia ser ver o filho com casa própria, telefone e família encaminhada. O resto seria lucro. Talvez até ela nem quisesse que o menino se metesse nessas confusões de política... No filme, Lula cresce bom rapaz, tem uma noitada de bebedeira (que poderia render uma ótima discussão, já que traria de volta a imagem do pai pinguço, mas não...) e logo vira sindicalista e, dali a pouco, presidente. Dona Lindu, a protagonista, morreu antes disso. Não há saga, não há herói, o filme perde o eixo...

É preciso entender que o público consagrou "Dois filhos de Francisco" não somente porque era a história de uma dupla sertaneja de sucesso, mas porque havia uma história mesmo a ser contada no filme. Em nenhum momento, há cenas embaraçosas como os diálogos românticos de Lula com suas duas mulheres ou nas últimas palavras do pai, correndo mar adentro, "não me deixa, Lindu". Constrangedor.

"O homem que engarrafava nuvens", se peca pela duração um tanto extensa, se consagra pela sinceridade. É a história de um personagem pouco conhecido, o letrista Humberto Teixeira, parceiro de Luiz Gonzaga em diversos clássicos da música brasileira. É também uma maneira da filha do personagem (a atriz Denise Dummont, que produziu o filme) tentar descobrir algo mais sobre o próprio pai. Acompanhamos Denise nas entrevistas e nas descobertas. Descobrimos junto com ela. Há uma trajetória ali, uma revelação - ah, o velho Aristóteles tinha razão, quando escreveu "Poética"...

Assim como "Dzi Croquettes", "O homem" é um filme feito por uma filha a propósito do pai. É uma aula prática de história do Brasil, da relação da segunda guerra com o baião, e de como a asa branca levou à tropicália... Há um momento genial no filme, quando revela-se a teoria de Raul Seixas: Bob Marley criou o reggae, na Jamaica, depois de ouvir um disco de Luiz Gonzaga. Viagem total, claro, mas muito divertida.
Não bastasse o bom personagem, o documentário tem números musicais esplêndidos. Chico Buarque canta Kalu... Gal e Sivuca... Mutantes... Ouve-se Miriam Makeba cantando um baião... e uma japonesinha cantando uma versão de Paraíba, sensacional. Lenine, Caetano (que não precisava cantar "Terra", mas...), Bebel Gilberto... O filme mostra que a música brasileira é mais que trilha sonora de nossas vidas, ela retrata e conduz, integra-se ao momento e avança. Em suma, "O homem que engarrafava nuvens", o título de filme brasileiro mais poético dos últimos anos, merece muito ser visto.

10 comentários:

  1. MV, sempre concordamos sobre filmes dos quais não gostamos e, com raras exceções, sobre os que amamos. Obviamente, só assistirei "O homem que engarrafava nuvens", pq além do baião, da genialidade de Humberto Teixeira e do título prá lá de lírico tem um diretor de cinema! Que me desculpe a família Barreto, mas Fábio não talento para ser chamado de diretor. Uma pequena bronca: gostaria de ter visto este filme com vc! Beijo carinhoso

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  2. Com todo respeito pelo seu trabalho, mas acho que o filme não é tão ruim assim, dá para aproveitar alguma coisa, como na novela PP que vocês estão acabamdo com o livro do Lancellotti. O livro sim, é maravilhoso, a novela, até parecia que iria ser algumo muito diferente, mas, caiu no lugar comum, ou seja, dois homens, inimigos, disputando uma mulher, uma pesonagem horrorosa como é Fernanda Lira.

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  3. Anônimo, primeiramente, por favor, assine o comentário, pra eu poder ter a quem responder. Segundo, nós não estamos "destruindo" nada, estamos escrevendo uma novela de 230 capítulos baseados na história original (e não adaptação literal - preste atenção nisto) de um livro que tem 2 personagens femininas. E a Fernanda Lira não é horrorosa, não. Questão de gosto.

    Mas a ideia desse blog não é discutir novela, especialmente a que eu faço parte da equipe. Minha intenção é falar de outros temas. O filme "Lula" desperdiça dois bons personagens, porque é mal dirigido e escrito. Veja bem, ele nem resvala num dos pontos mais importantes da biografia do Lula, que é a fundação do PT. Gostemos ou não do partido, foi um passo fundamental pra reforçar a democracia no Brasil.

    Ana, quando eu vi o Lula vc tava se refestelando em seus feudos torrinhenses. E com a novela, eu descubro que tenho tempo de ver um filme meia hora antes...

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  4. Impressionante como o mundo está infestado de "formadores de opinião" sem nenhuma ética! Como vc bem sabe, eu sempre assino minhas opiniões! Que, aliás, é o meu único legado neste mundão de meudeus! Uma boa notícia (para mim, pelo menos)! O cinema de Torrinha será restaurado!!! Fiquei tão felizinha... Quem sabe a estréia mundial do meu curta "Natureza morta" seja lá??

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  6. Você me deve um drops dulcora e eu não gostei nem um pouco que você virou um dramaturgo bem sucedido. Agora, fica por aí, decidindo vida personagem. Que inveja!
    Temos em comum com Lula, o filho do Brasil o fato de a Denise Paraná, autora do livro, ter sido muito minha amiga, a certa altura da vida, até fez par com um certo Mario Viana, como minhas testemunhas no casamento civil.
    Acho que se o filme tivesse sido feito em outro contexto, talvez houvesse mais liberdade para produzir, escrever a historia, divulgar.
    No fundo acho muito errado fazer um elogio a si mesmo enquanto ainda se está no poder, mesmo a história sendo muito boa. Faltou elegância, compostura, grandeza. A mim me lembra coisa possiveld e ter sido feita por ditador africano da década de setenta.
    E sobre "o Homem que engarrafava nuvens", que não vi, não acho esse titulo poético, nem tão legal assim, acho meio forçado, lembra "a menina que roubava livros", coisas do gênero.
    Gostei mais do nome do curta da Ana, o "Natureza morta", muito bom, manda vê, companheira.

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  7. ô louco, então a Denise e eu testemunhamos o seu primeiro casório? gente!!!!

    Ester, até concordo contigo no que diz respeito ao Lula-em-si (faltou elegância, o auto-elogio e tal), mas isso não significa que o filme tivesse que ter um roteiro fraco. Podia ser um bom filme, oras. Simples e direto, ponto.

    Quanto ao título das nuvens, não vou nem discutir, na boa. Se vc assistir o filme, vai entender o título. E a poesia dele.

    E "Natureza Morta" é um curta que a Ana sonha em fazer a partir de um texto meu - por sinal, estará em cartaz este mês no Panorama Teatral Contemporâneo do Grupo Tapa, no Viga Espaço Cênico (ao lado do Metrô Sumaré). Depois mando detalhes. É uma bela montagem, dirigida por Eric Lenate e estrelada por Anna Cecilia Junqueira.

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  8. Mário - realmente, antes de ver "Lula", já dá pra saber que deu quase tudo errado, porque o Fábio Barreto não tinha condições de dirigir esse filme, aliás, nenhum outro.
    Roteiro, realmente, faltou. Como muitas outras coisas.
    Gosto da Gloria Pires (que, confesso, não admiro nem na TV nem no cinema em geral) e do Rui Ricardo Diaz. São dois bons atores, que mostram carisma, apesar de não terem um diretor com quem contar.
    Falta muita coisa no filme, falta conflito, contradição, superação, tudo que fez pulsar "Dois Filhos de Francisco". Também não deviam ter feito o filme com o Lula no poder, não é bom.
    Agora, "O Homem que engarrafava Nuvens" é uma joia, dirigida por um dos melhores diretores da nova geração, Lírio Ferreira - que assinou "Cartola", vc viu? Uma outra pérola.
    O que é bonito no filme, fora esse título, que tem a ver com a história do personagem e lembra cordel, o que tem tudo a ver, é essa relação que faz entre o baião e a identidade brasileira. Imperdível!
    bj

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  9. A Denise Paraná me disse que fazer biografias, contar história recente é uma tendência mundial. Que tem peça com a vida do Obama em cartaz na Europa, que está indo muito bem por sina, que não criticam o Obama por causa disso. Saiu na The Ecomomist critica que confirma o que ela me disse, afirmam não se espera mais a pessoa morrer ou o tempo passar para se fazer um filme, citam o Ghandi como exemplo do que levou muito tempo para ser feito e o do Bush, dirigido pelo Oliver Stone, que foi feito no último dele no poder.
    Ela disse também que com mito não tem jeito, se filmassem com ele já fora do poder o acusariam de estar armando para voltar.
    Como eu desci a ripa no momento em foi realizado o filme, achei por bem registrar a defesa da autora do livro.

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  10. Sei não. Entendo a posição da Denise, mas não é por isso que vou achar bacana... Peça-biografia já é um pé no saco. Do Obama, então. Será o benedito, que vão jogar fora até a boa e velha noção de perspectiva histórica?
    Gandhi, o filme, demorou porque era uma superprodução. Só o que gastaram com figurante dava pra reconstruir uns 3 haitis.
    E filme do Oliver Stone, eu não me dou mais ao trabalho nem de ler a sinopse. Cara chato.

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