segunda-feira, 13 de julho de 2009

"A solidão vai acabar comigo..."


Abancado na poltrona E-10 do Teatro Augusta, sinto que o palco se transforma na fachada de um prédio de quitinetes do centro de São Paulo. É noite ou, melhor, aquela hora em que a noite não sabe se vai, o dia não decide se chega. Na calçada, um rapaz de corpo musculoso exibe-se com o despudor dos carentes. Nas janelas, cinqüentões bêbados assistem à passagem faminta do tempo. A nova peça de João Fábio Cabral, “Tanto”, dura 80 minutos, mas persiste mais tempo na memória da gente.

João Fábio vem construindo uma carreira muito legal de dramaturgo. Não nega as influências, mas aos poucos digere quem lhe serviu de mestre e aponta os próprios caminhos. Em “Rosa de Vidro”, linda, ele batia continência para Tennessee Williamns. Em “Flores Brancas”, arriscava-se no retrato da paixão de duas mulheres – a peça tinha diálogos atraentes, mas não aprofundava o conflito das personagens. Há outras peças dele por aí, é preciso ficar atento e ir. Ele erra e acerta, como todo mundo, mas faz, produz, dá a cara a tapa - como nem todo mundo.

Em “Tanto”, João Fábio mergulha mais fundo. Mergulha tanto, que no início temos a impressão que será uma peça de monólogos. Os personagens de João Fábio são verborrágicos – e por um momento eu temi não ouvir os sempre bons diálogos do autor. Enganei-me.

Quando começam a conversar, José, Antonio e Artur trocam tantas informações desencontradas, que o resultado – para eles, não para o público – acaba sendo o oposto. Fala-se muito, mas não se chega a lugar algum. Aqueles três homens não se entendem, estão sozinhos, esmagados por uma solidão absoluta. Nenhum deles é de São Paulo (como o autor), os três se conheceram aqui e não estranham serem de outros recantos – de onde, não dizem, tudo é deliciosamente vago. Esse não-dizer tem um encanto especial numa época em que as pessoas querem se expor sem limites.

A certa altura da peça, personagens expostos, diálogos travados – na platéia sente-se a amarga solidão que cerca aqueles homens. É como se o espírito de Caio Fernando Abreu pairasse no ar, mas sem a devoção mórbida que muita gente cultua em torno do escritor gaúcho. É como se a qualquer instante, a voz rouca de uma jovem Marina Lima fosse rasgar os ares cantando “Solidão”, de Dolores Duran. E ninguém achasse isso estranho.

Os personagens de “Tanto” moram no centro de São Paulo, mas são de fora. A peça se passa em dezembro e, mesmo assim, faz frio. Os personagens navegam na internet, mas vivem no aquário dos anos 80. O michê procura carinho, o escritor não vê mais saída e o gay – que profissão tem aquele gay? – mergulha na vodca e na saudade de Elis Regina, rindo de seus vexames. Ainda paira um romantismo nas relações, o dinheiro não limitou os caminhos.

Gustavo Haddad (o escritor depressivo) e Guilherme Gonzáles (o gay que adora Elis) são jovens demais para seus papéis, é verdade. Mas aí entra o que faz o grande e imenso barato do teatro: que importa? Lá pelas tantas, a gente está tão dentro da história, que Gustavo, Guilherme ou Fábio podem brincar do que quiserem, fingir que têm a idade que quiserem ter… Eu embarquei na viagem deles – e recomendo o roteiro. A peça fica mais dois fins de semana em cartaz.

É uma peça feita com a cara e a coragem, falando de gays, de homens solitários, de figuras urbanas, de gente que se arrasta nas ruas à procura de outro olhar. “Tanto” tem cenário mínimo, três bons atores e um texto que fisga. É o que os queridinhos da mídia chamam pomposamente de “teatro essencial”. Só que esse é de verdade.

2 comentários:

  1. Você falou da criação e das influências do seu colega. Bem que você poderia presentear essa humilde seguidora falando como vê o ofício de escrever, o que leva alguem a seguir esse caminho, as pedras e os prazeres, pelo seu olhar.
    Acho que mais gente dessa comunidade iria gostar.

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  2. (tom dramático, pausa reflexiva, olhar a distância) Ester, escrever é um sacerdócio.

    Vou pensar a respeito e começar a postar sobre isso. Acho legal mesmo falar das influências. Como disse Harold Pinter, tudo influencia.

    bjs

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