sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Sem Olívia nem Stabler


Narrada em poucas linhas, a notícia parecia mais a sinopse de um episódio de "Law & Order: Special Victims Unit". No meio da aula, um garoto de 10 anos se levanta, aponta um revólver para a professora e atira. Em seguida, volta a arma para a própria cabeça e se mata. Infelizmente, a história é real, aconteceu em São Caetano do Sul, na região metropolitana de São Paulo, e está fora da jurisdição de Olivia Benson e Eliott Stabler, os carismáticos detetives da série de TV. Nos jornais do dia seguinte, repórteres e especialistas tentam, mas não conseguem explicar o que houve naquela escola.
Cenas de suicídio são traumáticas para quem assiste e para quem sobrevive. Cenas de crianças armadas apavoram. A ideia de uma criança de 10 anos tirando a própria vida com um tiro ultrapassa qualquer noção de tragédia. É inconcebível. Mas aconteceu. O que teria levado o menino de 10 anos - miúdo, segundo relatam colegas de escola - a se matar? Uma depressão não diagnosticada pelos médicos da saúde pública, pelos professores, pelos pais? Ou a vaga ideia de que aquilo era apenas uma brincadeira e que, passado o susto, ele voltaria à ação, como personagem de um videogame? Se houver vida depois do último suspiro, o menino deve estar espantado, como quem quebrou definitivamente o carrinho preferido.
O que deu errado na curta vida desse menino? Ele e o irmão mais velho estudavam na melhor escola pública da cidade, considerada ótima pelos padrões do Enem ("é difícil arrumar vaga", diz uma aluna ao jornal), tinham casa e família estruturada. O pai, guarda municipal, não parece do tipo ausente: assim que notou a falta da arma em casa, correu até a escola e falou com os dois filhos. Ambos negaram ter pego o revólver calibre 38 e o pai, agora, se castiga por não ter revistado a mochila dos meninos. Ele confiou na palavra dos filhos, o que - a princípio - é sinal de uma relação saudável. O caçula era bom aluno, quieto e, até agora, só o namorado da professora ferida é quem teria apontado algum desvio de conduta do moleque. Salvo esse depoimento, a vida do menino parecia um comercial de margarina.
Mas havia uma arma no cenário e isso muda muito a luz dos fatos. Era uma arma legalizada, com o registro em dia, instrumento de trabalho do pai - embora fosse um revólver comprado em caráter particular, não era da corporação. Numa hora dessas, inevitável pensar que a falha trágica começou no instante em que o pai decidiu comprar o revólver. Por que ter uma arma em casa? É o que ele mesmo deve se perguntar a todo instante, enquanto vela o corpo do filho, sem necessidade do nosso dedo acusador tocando a ferida aberta. A ideia talvez fosse proteger a casa e foi através dela que a tragédia se instalou.
O comercial de margarina começou a ruir aí. Armas podem fascinar crianças que estejam habituadas aos games e filmes, nos quais destruição e morte são apenas cenas, invenção, mentirinha. Armas de fogo contradizem qualquer desejo de harmonia, paz ou entendimento, pela simples razão de serem, elas mesmas, instrumentos de coerção, de ameaça, de imposição da vontade - mando eu, que detenho a posse do revólver.
O menino de 10 anos, dizem os especialistas em dar diagnósticos a distância, já teria noção de certo e errado. E, por isso mesmo, teria se matado, com medo da punição pelo crime que cometera atirando na professora. É curioso perceber que, ao contrário do que fazem os meninos quando roubam a arma do pai, este não quis se exibir perante os colegas. Ele tinha um objetivo, atacar a professora, símbolo de superioridade na hierarquia da sua vida.
Ao ler o noticiário sobre o caso, lembrei-me de Roberto Peukert Valente que, em 1985, aos 18 anos, matou pai, mãe e três irmãos, depois de levar uma bronca materna por ouvir som muito alto. No velório da família, eu - repórter da Folha - tinha a tarefa de montar um perfil do asssassino através dos depoimentos de vizinhos, parentes e amigos. Quando voltei para a redação, a editora Renata Rangel e o diretor Boris Casoy me chamaram pra dar um resumo da ópera: quem era o criminoso? Eu, assustado, dizia: "Era um cara normal. Foi o que mais escutei hoje no cemitério. Ele era um rapaz normal". O único ponto diferente dos outros normais era que Roberto nunca havia desobedecido os pais, nem elevado a voz, nem mesmo batido a porta do quarto. Era "normal", o que já o excluía do comportamento geral dos adolescentes. Roberto explodiu uma única vez - e, depois, confessaria o crime, comendo uma pizza na delegacia.
Pode ser que uma história não tenha nada a ver com a outra e seja tudo viagem da minha cabeça. Mas o mundo de propaganda de cartão de crédito em que, lemos hoje, vivia o menino de São Caetano não combina com o que aconteceu dentro da escola. Ninguém usa revólver em comercial de margarina.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Parceiros, ainda e sempre


Coloquei o ponto final na primeira versão de "Pantagruel" no dia 10 de setembro de 2001. No dia seguinte, extremistas a mando de Bin Laden jogaram dois aviões contra o World Trade Center, em Nova York. Obviamente, um fato não tem relação nenhuma com o outro, mas a gente encontra meios muito particulares de marcar acontecimentos importantes em nossas biografias. Para mim, o 11 de setembro é e será sempre o dia seguinte ao fim da primeira etapa de um trabalho que mudou a minha vida: terceira parceria minha com os Parlapatões, "Pantagruel" me estimulou a pedir 4 meses de licença não-remunerada do Estadão e, por sua vez, estimulou o Estadão a me colocar na lista de demitidos quando houve um corte brutal na redação.
Meu retorno ao jornal, em dezembro de 2001, durou 15 minutos. Já demitido, antes mesmo de pegar o carro no estacionamento pra deixar o prédio na Marginal do Tietê, decidi que ia me dedicar de vez à dramaturgia. Na bagagem, tinha uma comédia estrelada por Rosi Campos, "Ifigônia", e três peças com um grupo que, naquele 2001, comemorava dez anos de existência - os Parlapas. Esta semana, em que o grupo de palhaços festejou 20 anos de vida, serviu também para eu colocar a minha trajetória em perspectiva. Não foi nada radical, nem depressivo, foi só a constatação de que, ao cruzar caminho com os parlapatões, eu encontrei um novo rumo. Não igual ao deles, mas o meu - meio paralelo, meio avesso, meio cruzando-se de novo (como no divertido espetáculo itinerante "O Pior de São Paulo").
Só sei que, na minha carreira, os Parlapatões foram muito importantes - são até hoje e serão por muito mais, assim espero -, mas creio que eu também tenho lá minha funçãozinha no meio desses 20 anos de palhaçadas. No mínimo, como segundo autor mais montado do grupo, abaixo apenas do diretor-ator-autor Hugo Possolo. Se alguém me perguntar o que um grupo de palhaços tem a ensinar a um autor que achava não ter mão pra comédia, eu diria rapidamente: me ensinaram a ser sério. Sem piada.
Fazer rir, aprendi com eles, é de um rigor, de uma precisão e de um respeito absurdos. Fazer rir não é levar tudo na flauta - tente chegar 5 minutos atrasado pra reunião ou pro ensaio e você saberá que rapadura é doce, mas não é mole, não. Ah, mas eu aprendi também a encontrar o tempo da piada, a frase certa pra dar ritmo à cena, a noção de tempo e espaço que o humor (e o teatro, como um todo) exige. Aprendi a trabalhar com gente que se dedica integralmente ao trabalho e que respeita radicalmente seus parceiros de jornada. Ética faz parte da receita.
O melhor de tudo foi o que surgiu a partir dos trabalhos - a relação de amizade profunda com Hugo, Raul, Napão, Claudinei, Cris, Marcinha... E a total independência de poderes, a relação aberta que nos permite trabalhar com meio mundo e, de repente, voltar um pros braços do outro. Quando o Hugo me liga e chama de "Marião" é a senha pra uma nova fria - ou trabalho, o que, com eles, é sempre meio sinônimo. "Vamos fazer uma peça sem roteiro dentro de um ônibus e... ah, sem ensaio". Resposta: "Tá". E dá certo!
Bom também é não precisar idolatrar tudo o que o outro faz. Nem tudo o que eles fizeram nesses últimos 10 anos foram do meu agrado e nem todo trabalho meu foi assim uma coqueluche entre os parlapas. Mas quando agrada, ah, é uma alegria danada. Domingo, ao assistir "Ridículos ainda e sempre", um texto russo que parece ter sido escrito para os Parlapatões (como bem previu o diretor Antonio Abujamra, que mostrou a peça pro grupo)... durante a apresentação, enfim, eu me senti muito feliz por ver os meus camaradas mandando uma brasa danada no palco. Raul e Hugo, ao lado de Jaqueline Obrigon, Abhyanna e o pop star Helio Pottes, apossam-se do texto de Daniil Kharms e, entre uma risada e outra, atingem níveis incríveis de poesia. Saí do teatro feliz da vida, como se fosse uma boa estreia minha. Se isso não é parceria, olha... não sei mais o que é.





quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Um chicabon metafórico


A página da Wikipedia informa que a cantora Zélia Duncan completou os 42 km de sua primeira maratona em 5 horas, 10 minutos e 34 segundos, no dia 10 de outubro de 2010. A enciclopédia virtual ainda não comunica aos leitores que no dia 3 de setembro passado, a cantora de Niteroi comemorou 30 anos de carreira fazendo em cerca de 60 minutos uma estreia impecável: "Totatiando", o espetáculo que Zélia não quer chamar de show, é sedutor da primeira à última sílaba. Se, no começo, as pessoas estranham a cantora espremida num terninho escuro... Se, ao contrário dos shows normais, há poucos aplausos entre uma música e outra... Se a encenação bem conduzida pela atriz Regina Braga segue uma partitura detalhada... Tudo isso converge para um final que poderia ser chamado de apoteótico, caso o adjetivo não estivesse tão desgastado. É um final energizante, pronto.
Cantora e diretora explicam que "Totatiando" é uma peça porque tem roteiro e personagem definido - o narrador seria o próprio compositor paulistano Luiz Tatit, autor de quase tudo o que Zélia fala em cena. A exceção é o poema em que Mário de Andrade espalha o próprio corpo despedaçado em vários pontos da cidade. É um dos melhores momentos do... ah, do show, pronto. Outro grande momento? A interpretação de "Dodoi", parceria de Tatit e Itamar Assumpção. Outro? "Felicidade". Outro? Melhor ir ver o show, a peça, o que for. Melhor correr para o Sesc Belenzinho e garantir seu ingresso, "Totatiando" fica em cartaz até 18 de setembro.
Entende-se a hesitação da equipe em definir "Totatiando". Ousar, às vezes, exige um novo vocabulário. Mas no caso do espetáculo, Zélia pode contar alguns precedentes desde que, em 1976, Elis Regina aliou-se à diretora Myriam Muniz para implodir o esquema banquinho-violão-conjunto ao fundo-microfone. Em "Falso Brilhante", tudo estava a serviço de uma 'história', a da própria Elis. Cenários e figurinos (de Naum Alves de Souza), luz, músicos, músicas, voz, tudo estava encadeado. Não foi à toa que ficou quase dois anos em cartaz lotando um teatro de 1.200 lugares.
Escoltada sempre por bons diretores de teatro, Maria Bethânia faz shows - sim, shows - com intenções bem definidas. Desde os popurris dirigidos por Fauzi Arap nos anos 70 ( "Drama Terceiro Ato", "A Cena Muda"), sinais de um país e uma cultura retalhada pela ditadura militar, até os mais recentes, conduzidos por Bia Lessa, cujos barroquismos casam-se bem com a alma despudorada de Bethânia - e quem assistiu "Brasileirinho" pode ver isso: o show tinha uma linha de pensamento, havia coerência de uma canção a outra, de um poema a outro. Como escreveu Evaldo Mocarzel no Caderno 2, "havia dramaturrrgia".
"Totatiando" merece aplausos entusiasmados por vários motivos: primeiro, porque realmente é bom, é bonito (o cenário, a luz, os dois músicos, excelentes). Depois, porque oferece ao distinto público a chance de conhecer melhor a obra de Luiz Tatit, mais ligado ao Grupo Rumo e à cantora Na Ozetti. Finalmente, por dar a esse mesmo público a oportunidade de sair da mesmice. Zélia poderia comemorar três décadas de cantoria enfileirando no palco sucessos e preferências. Optou por fazer algo diferente, radicalmente diferente: no show não há espaço para alguém gritar do fundo da platéia "Canta Catedral!".
Ousar é um verbo meio em desuso - eu ia escrever nas artes, que é onde mais conduzo meu barquinho, mas falta ousadia em tudo, ultimamente. Nem na política temos coragem de romper tradições. Reclamamos do Sarney, do Roriz, do Calheiros, mas pouco avançamos além dos queixumes. Assim, a cada pleito, lá estão eles, de novo, não apenas disputando, mas conquistando efetivamente o voto dos eleitores. As novelas repetem elencos e tramas, os filmes copiam e colam o mesmo roteiro, os escritores da nova geração capricham na auto-referência repetitiva, o teatro divide-se entre a cena do sofá na sala e o gelo seco com voz tremida, porque uma vez isso foi moderno. Boceja-se sem pudor.
Fazer um show diferente do formato esperado pode não abalar as estruturas do sistema. Pode deixar alguns fãs tradicionais mais frustrados ("Poxa, ela não cantou Catedral..."). Pode até mesmo errar - não é o caso, mas havia o risco. Aliás, essa é "a" palavra. Risco. Estamos cada vez mais fugindo dos riscos. E como dizia Nelson Rodrigues: sem se arriscar, a criatura não chupa um Chicabon.
O risco é o grande medo. Protegemos nossa opinião barrando das redes sociais qualquer pessoa que pense diferente e nos faça avaliar um novo ponto de vista. Evitamos olhar alguém numa festa, corremos o risco de nos apaixonar. Vai que... "Vai que" virou mantra e bordão de propaganda - ganhando uma conotação pessimista: vai que dá errado... A pista é outra: vai que dá certo?

P.S.: Zélia, Regina, Célia... Eu acho que é show.