A página da Wikipedia informa que a cantora Zélia Duncan completou os 42 km de sua primeira maratona em 5 horas, 10 minutos e 34 segundos, no dia 10 de outubro de 2010. A enciclopédia virtual ainda não comunica aos leitores que no dia 3 de setembro passado, a cantora de Niteroi comemorou 30 anos de carreira fazendo em cerca de 60 minutos uma estreia impecável: "Totatiando", o espetáculo que Zélia não quer chamar de show, é sedutor da primeira à última sílaba. Se, no começo, as pessoas estranham a cantora espremida num terninho escuro... Se, ao contrário dos shows normais, há poucos aplausos entre uma música e outra... Se a encenação bem conduzida pela atriz Regina Braga segue uma partitura detalhada... Tudo isso converge para um final que poderia ser chamado de apoteótico, caso o adjetivo não estivesse tão desgastado. É um final energizante, pronto.
Cantora e diretora explicam que "Totatiando" é uma peça porque tem roteiro e personagem definido - o narrador seria o próprio compositor paulistano Luiz Tatit, autor de quase tudo o que Zélia fala em cena. A exceção é o poema em que Mário de Andrade espalha o próprio corpo despedaçado em vários pontos da cidade. É um dos melhores momentos do... ah, do show, pronto. Outro grande momento? A interpretação de "Dodoi", parceria de Tatit e Itamar Assumpção. Outro? "Felicidade". Outro? Melhor ir ver o show, a peça, o que for. Melhor correr para o Sesc Belenzinho e garantir seu ingresso, "Totatiando" fica em cartaz até 18 de setembro.
Entende-se a hesitação da equipe em definir "Totatiando". Ousar, às vezes, exige um novo vocabulário. Mas no caso do espetáculo, Zélia pode contar alguns precedentes desde que, em 1976, Elis Regina aliou-se à diretora Myriam Muniz para implodir o esquema banquinho-violão-conjunto ao fundo-microfone. Em "Falso Brilhante", tudo estava a serviço de uma 'história', a da própria Elis. Cenários e figurinos (de Naum Alves de Souza), luz, músicos, músicas, voz, tudo estava encadeado. Não foi à toa que ficou quase dois anos em cartaz lotando um teatro de 1.200 lugares.
Escoltada sempre por bons diretores de teatro, Maria Bethânia faz shows - sim, shows - com intenções bem definidas. Desde os popurris dirigidos por Fauzi Arap nos anos 70 ( "Drama Terceiro Ato", "A Cena Muda"), sinais de um país e uma cultura retalhada pela ditadura militar, até os mais recentes, conduzidos por Bia Lessa, cujos barroquismos casam-se bem com a alma despudorada de Bethânia - e quem assistiu "Brasileirinho" pode ver isso: o show tinha uma linha de pensamento, havia coerência de uma canção a outra, de um poema a outro. Como escreveu Evaldo Mocarzel no Caderno 2, "havia dramaturrrgia".
"Totatiando" merece aplausos entusiasmados por vários motivos: primeiro, porque realmente é bom, é bonito (o cenário, a luz, os dois músicos, excelentes). Depois, porque oferece ao distinto público a chance de conhecer melhor a obra de Luiz Tatit, mais ligado ao Grupo Rumo e à cantora Na Ozetti. Finalmente, por dar a esse mesmo público a oportunidade de sair da mesmice. Zélia poderia comemorar três décadas de cantoria enfileirando no palco sucessos e preferências. Optou por fazer algo diferente, radicalmente diferente: no show não há espaço para alguém gritar do fundo da platéia "Canta Catedral!".
Ousar é um verbo meio em desuso - eu ia escrever nas artes, que é onde mais conduzo meu barquinho, mas falta ousadia em tudo, ultimamente. Nem na política temos coragem de romper tradições. Reclamamos do Sarney, do Roriz, do Calheiros, mas pouco avançamos além dos queixumes. Assim, a cada pleito, lá estão eles, de novo, não apenas disputando, mas conquistando efetivamente o voto dos eleitores. As novelas repetem elencos e tramas, os filmes copiam e colam o mesmo roteiro, os escritores da nova geração capricham na auto-referência repetitiva, o teatro divide-se entre a cena do sofá na sala e o gelo seco com voz tremida, porque uma vez isso foi moderno. Boceja-se sem pudor.
Fazer um show diferente do formato esperado pode não abalar as estruturas do sistema. Pode deixar alguns fãs tradicionais mais frustrados ("Poxa, ela não cantou Catedral..."). Pode até mesmo errar - não é o caso, mas havia o risco. Aliás, essa é "a" palavra. Risco. Estamos cada vez mais fugindo dos riscos. E como dizia Nelson Rodrigues: sem se arriscar, a criatura não chupa um Chicabon.
O risco é o grande medo. Protegemos nossa opinião barrando das redes sociais qualquer pessoa que pense diferente e nos faça avaliar um novo ponto de vista. Evitamos olhar alguém numa festa, corremos o risco de nos apaixonar. Vai que... "Vai que" virou mantra e bordão de propaganda - ganhando uma conotação pessimista: vai que dá errado... A pista é outra: vai que dá certo?
P.S.: Zélia, Regina, Célia... Eu acho que é show.
Querido homem agrupador de belas palavras, lindo e preciso comentário sobre esse sublime solo musical que se encaixa em Teatro, assim como Falso Brilhante um dia se encaixou pra mim. Independentemente da nomenclatura ou visão, o que importa, e você assim o disse, é o arrojo e a coragem de se jogar. Por isso, gosto tanto de você também. Meu beijo e abraço, Célia Forte
ResponderExcluirQuem acha que a Arte não muda a vida das pessoas é porque ainda não encontrou a Arte certa.
ResponderExcluirPuxa, que texto lindo, cara! Se já não tivesse garantido meu ingresso para assistir a "Totatiando" no sábado, ia correr e atravessar o estado para fazer isso agora! Parabéns!
ResponderExcluirAdorei o seu texto e a sua compreensão do espetáculo. Lógico, a vontade de assisti-lo transbordou.Não vi e já gostei. Mesmo antes de aplaudir o espetáculo em si- já feito por você- somo-me aos aplausos dos que reverenciam a coragem artística - deve ser pessoal também- de se redescobrir, sem temer, ou melhor, enfrentando temor do fracasso.
ResponderExcluirHenderson e Valentina, vcs aumentaram a minha responsa... Por favor, voltem ao blog depois de assistir o show e me digam o que acharam. Bjs.
ResponderExcluirVolto sim, mas, para isto, é preciso que o show saia de São Paulo.
ResponderExcluirSENSACIONAL!
ResponderExcluirNão poderia ter escolhido melhores palavras e a Zélia outra melhor forma de se expressar e nos orgulhar de tanto talento. Obrigada pelo texto tão bem colocado e sensibilidade e a Zélia pela grandiosa homenagem à Luiz Tatit!!!
Ainda bem que depois de muito esforço ( uma carioca tentando comprar ingresso em SP sem venda online é um grande esforço), mas felizmente e graças a uma amiga, eu consegui finalmente comprar os ingressos para assistir. E depois de ler o seu artigo eu comprovei o que eu já tenho certeza... Zélia Duncan é sensacional e a peça não pode ser diferente!!!
ResponderExcluirGosto tanto do Luiz Tatit, amei seu texto, relembrei lindos shows da Bethania, o maravilhoso disco Falso Brilhante (não vi o show, acho que era fora da minha faixa etária na época)... Mas a Zelia Duncan não passa pelo crivo do meu dial, não. Nem nos Mutantes.
ResponderExcluirSensacional texto. Fiquei ate com vontade de ver o sho/ digo. a pe/ o acontecimento Valdermorth cujo nome nao se pronuncia. E olha que eu nem gosto de Zelia Duncan.
ResponderExcluirMário:
ResponderExcluirQue delícia de texto sobre a Zélia!
O risco q ela e a Regina correram foi mais do que válido.
E quero te dizer mais: essa a função do blog, do seu blog. Incentivar o leitor a participar da produção cultural da cidade!
Ficamos com a maior vontade de ir ao Belenzinho (isso é uma tarefa no mínimo árdua, nessa nossa caótica cidade) para nos deliciarmos como show/peça de Zélia/Regina/Tatit.
Parabéns
bjs
Maurício
Mário, viajei de Brasilia até Sao Paulo só pra assistir este espetáculo! É um espetáculo muito delicado, muito lindo, muito cheio de detalhes, a iluminação, os gestos, cada expressao corporal, cada passo no palco, cada pausa, cada palavra cantada, entoada, os músicos que interagem com ela, enfim, é uma riqueza de detalhes. Sem sobra de dúvida um dos espetáculos mais bonitos que eu já assisti em toda minha vida. A canção "De favor" é de uma sensibilidade ímpar, tudo aquilo representado com o som da batida do coração é simplesmente arrebatador!
ResponderExcluirEu fiquei completamente hipnotizado, saí do teatro estonteado, levou um tempo pra eu assimilar tudo o q vi ali... Quem se deixa tocar pela arte da Zélia vai perceber que ela é muito mais do que a canções "Alma" e "Catedral". Zélia como "cantriz" atua como uma missionária da música mostrando a todo Brasil a importancia de compositores como Luiz Tatit, Itamar Assumpção, etc.
Fiquei muito feliz dela comemorar os 30 anos de carreira dela em alto nivel, inovando, se arriscando e mais uma vez se transformando em outra! Vida longa à Zélia!
Algún día tendré oportunidad de ir a conocerla. vivo en Colombia y he seguido paso a paso su enorme trabajo musical, matizado con poesía, una excelente y bella voz y sobre todo la fuerza y el amor presente en todas sus canciones. Felicitaciones Zelia! Afortunado Brasil con tan maravillosa intérprete!
ResponderExcluirEm algum dia terei oportunidade de ir a Brasil para conhecê-la pessoalmente. Vivo em Colômbia e segui passo a passo seu enorme trabalho musical, (através de internet) enfatizado com maravilhosa poesia, uma excelente e bela voz e sobretudo a força e o amor presente a todas suas canções. ¡Felicitaciones Zelia! Queremos-te muito, por ser por ser tão humana. Afortunado Brasil com tão bom ser humano e tão maravilhosa intérprete!
ResponderExcluirFãs de Zelia