
Narrada em poucas linhas, a notícia parecia mais a sinopse de um episódio de "Law & Order: Special Victims Unit". No meio da aula, um garoto de 10 anos se levanta, aponta um revólver para a professora e atira. Em seguida, volta a arma para a própria cabeça e se mata. Infelizmente, a história é real, aconteceu em São Caetano do Sul, na região metropolitana de São Paulo, e está fora da jurisdição de Olivia Benson e Eliott Stabler, os carismáticos detetives da série de TV. Nos jornais do dia seguinte, repórteres e especialistas tentam, mas não conseguem explicar o que houve naquela escola.
Cenas de suicídio são traumáticas para quem assiste e para quem sobrevive. Cenas de crianças armadas apavoram. A ideia de uma criança de 10 anos tirando a própria vida com um tiro ultrapassa qualquer noção de tragédia. É inconcebível. Mas aconteceu. O que teria levado o menino de 10 anos - miúdo, segundo relatam colegas de escola - a se matar? Uma depressão não diagnosticada pelos médicos da saúde pública, pelos professores, pelos pais? Ou a vaga ideia de que aquilo era apenas uma brincadeira e que, passado o susto, ele voltaria à ação, como personagem de um videogame? Se houver vida depois do último suspiro, o menino deve estar espantado, como quem quebrou definitivamente o carrinho preferido.
O que deu errado na curta vida desse menino? Ele e o irmão mais velho estudavam na melhor escola pública da cidade, considerada ótima pelos padrões do Enem ("é difícil arrumar vaga", diz uma aluna ao jornal), tinham casa e família estruturada. O pai, guarda municipal, não parece do tipo ausente: assim que notou a falta da arma em casa, correu até a escola e falou com os dois filhos. Ambos negaram ter pego o revólver calibre 38 e o pai, agora, se castiga por não ter revistado a mochila dos meninos. Ele confiou na palavra dos filhos, o que - a princípio - é sinal de uma relação saudável. O caçula era bom aluno, quieto e, até agora, só o namorado da professora ferida é quem teria apontado algum desvio de conduta do moleque. Salvo esse depoimento, a vida do menino parecia um comercial de margarina.
Mas havia uma arma no cenário e isso muda muito a luz dos fatos. Era uma arma legalizada, com o registro em dia, instrumento de trabalho do pai - embora fosse um revólver comprado em caráter particular, não era da corporação. Numa hora dessas, inevitável pensar que a falha trágica começou no instante em que o pai decidiu comprar o revólver. Por que ter uma arma em casa? É o que ele mesmo deve se perguntar a todo instante, enquanto vela o corpo do filho, sem necessidade do nosso dedo acusador tocando a ferida aberta. A ideia talvez fosse proteger a casa e foi através dela que a tragédia se instalou.
O comercial de margarina começou a ruir aí. Armas podem fascinar crianças que estejam habituadas aos games e filmes, nos quais destruição e morte são apenas cenas, invenção, mentirinha. Armas de fogo contradizem qualquer desejo de harmonia, paz ou entendimento, pela simples razão de serem, elas mesmas, instrumentos de coerção, de ameaça, de imposição da vontade - mando eu, que detenho a posse do revólver.
O menino de 10 anos, dizem os especialistas em dar diagnósticos a distância, já teria noção de certo e errado. E, por isso mesmo, teria se matado, com medo da punição pelo crime que cometera atirando na professora. É curioso perceber que, ao contrário do que fazem os meninos quando roubam a arma do pai, este não quis se exibir perante os colegas. Ele tinha um objetivo, atacar a professora, símbolo de superioridade na hierarquia da sua vida.
Ao ler o noticiário sobre o caso, lembrei-me de Roberto Peukert Valente que, em 1985, aos 18 anos, matou pai, mãe e três irmãos, depois de levar uma bronca materna por ouvir som muito alto. No velório da família, eu - repórter da Folha - tinha a tarefa de montar um perfil do asssassino através dos depoimentos de vizinhos, parentes e amigos. Quando voltei para a redação, a editora Renata Rangel e o diretor Boris Casoy me chamaram pra dar um resumo da ópera: quem era o criminoso? Eu, assustado, dizia: "Era um cara normal. Foi o que mais escutei hoje no cemitério. Ele era um rapaz normal". O único ponto diferente dos outros normais era que Roberto nunca havia desobedecido os pais, nem elevado a voz, nem mesmo batido a porta do quarto. Era "normal", o que já o excluía do comportamento geral dos adolescentes. Roberto explodiu uma única vez - e, depois, confessaria o crime, comendo uma pizza na delegacia.
Pode ser que uma história não tenha nada a ver com a outra e seja tudo viagem da minha cabeça. Mas o mundo de propaganda de cartão de crédito em que, lemos hoje, vivia o menino de São Caetano não combina com o que aconteceu dentro da escola. Ninguém usa revólver em comercial de margarina.