Um nunca soube do outro e se não fosse a coincidência de frequentarem as páginas do noticiário nos mesmos dias, certamente não haveria porque ligar Juan a Yoham. Mas ambos tinham muito em comum: eram meninos, brincavam na rua, tinham vários irmãos e foram batizados por suas mães com nomes que buscavam tirá-los da sina madrasta que uniformiza os caminhos de tantos zés, joões e carlinhos. Não deu certo a mandinga. Isso foi outro ponto comum entre os meninos. Ah, e o fato de serem, os dois, pobres.
A bala perdida que atingiu Juan numa favela do Rio e a avalanche de terra que cobriu Yoham, entre São Paulo e Diadema, poderiam ser o ponto final de duas vidinhas curtas, mas não foi bem assim que aconteceu. Juan virou "o menino que desapareceu depois de uma suposta troca de tiros entre policiais e traficantes de uma favela". Sua mãe apareceu em jornais e programas de TV, à espera de uma notícia que não vinha. Suspeita-se que a própria polícia tenha sumido com o menino ferido. Só isso bastaria para transtornar uma mãe, acho eu. Mas a coisa não ficou nisso.
Na semana passada, um corpo de criança foi encontrado num rio, lá pelas redondezas do tiroteio. O circo de sempre - emissoras de TV, policiais querendo aparecer, policiais querendo sumir e, pensava eu, um nó apertado no peito da mãe: "será ele, será o Juan? Deus queira que não". E era um corpo que ninguém conseguia identificar o sexo - esse detalhe mórbido é de uma crueldade alucinante: que estado era o desse corpo, que não permitia diferenciar um pinto de uma xoxota? Será que é o meu filho que está assim, maltratado? E veio a autoridade do Rio dizer que era o corpo de uma menina. Bem ou mal, era uma esperança pra mãe do Juan.
Até que, no começo desta semana, muda o veredito: era mesmo o corpo de Juan, aquele que ninguém sabia identificar. E veio mais uma notícia: o enterro teria que ser antecipado, pois temia-se "alguma coisa de inesperado". E eu só tinha na minha mente a imagem da mãe de Juan, de uma mãe que precisou matar várias vezes o mesmo filho. Quantas vezes ainda ela terá que sofrer essa morte? Não passa pela cabeça das autoridades que a incerteza fere mais que a notícia definitiva?
Depois, veio a tragédia das casas soterradas. Dizem que havia uma obra da prefeitura ali e, de maneira pouco direta, tenta-se jogar a culpa nos soterrados, que insistiam em morar nos lugares de risco. A mãe de Yoham apareceu e disse que teria, sim, mudado com a família para outro canto. Chegou mesmo a achar uma casa de 40 mil reais, mas a prefeitura avisou que só pagava 25 mil - mais ou menos, o novo salário do prefeito. Onde o burocrata da prefeitura encontra um barraco que seja para comprar com 25 mil reais?
"Por 15 mil, perdi o meu filho", disse a mulher. Errou a conta, madame. Seu filho morreu porque o dinheiro que pagamos em impostos reverte-se, quase sempre, em propinas, salários a autoridades inúteis e gastos desnecessários com gabinetes de políticos. Não sobrou muito para tentar livrar algumas pessoas das avalanches. É a vida. Deus quis assim.
Juan e Yoham também morrem a cada vez que suas pequenas tragédias somem dos jornais e dos noticiários. Nem mesmo a gente, classe média que ainda se julga capaz de alguma indignação confortável, nem mesmo a gente estica o pensamento sobre eles. Juan e Yoham duram até a próxima vingança de Norma contra Léo. E daqui a poucos dias, nem mesmo Norma ou Léo farão parte das nossas vidas. Esqueceremos e aguardaremos o próximo vilão, a próxima mocinha, a tragédia seguinte. Tudo anda muito fugaz, nas novelas e na vida.
Vc não pode imaginar como é você importante para mim. Amo sua capacidade de se imaginar como o outro. A cada dia aprendo mais com você. Morro de vergonha de não ter visto o óbvio que você retrata neste post. Obrigada por me manter viva.
ResponderExcluirNossa, Ana.. agora foi vc quem me pegou...
ResponderExcluirMeninos pobres, a morte banalizada. Não importa quem escondeu e mutilou o corpo, de quem é a culpa... Eles não viram notícia boa por muito tempo, como os de classe média alta, ninguém investiga. É mais um descaso que vai pra debaixo do tapete. Obrigada por não deixar passar em branco, MARIO.
ResponderExcluirBjos
Gostei muito da sua crõnica. Não sei quem é Norma, mas desconfio que deva ser personagem de novela. Este país fica ainda mais triste, quando o artista cria uma Norma. Sem e com trocadilho.
ResponderExcluir