segunda-feira, 20 de junho de 2011

Tempo tempo tempo tempo


O tempo nos incomoda. Perturba. Confunde. É um inimigo contra o qual a batalha é sempre perdida. Pode, sim, ser nosso aliado, quando precisamos de calma para encontrar soluções ou queremos apreciar o crescimento de alguém ou alguma coisa. O tempo mexe com todos. Penso no tempo que passa desde o final dos anos 70, quando Caetano gravou "Oração ao Tempo", no LP (era LP naquela época) Cinema Transcendental. Naquela época, um colega da revisão da Abril, o Zeca, todo chegado a papos-cabeça, babava-se pelo Caetano - vocês acreditam nisso, jovens? os universitários babavam pelo Caetano e não pelo vencedor do último reality. "O Caetano fez um tratado filosófico sobre o tempo", dizia o Zeca. E eu passei a prestar a maior atenção na música e, até hoje, quando a ouço, lembro da cena, do Zeca e concordo com ele. "Oração ao Tempo" é mesmo um tratado.
Depois foi o Chico, que começou a questionar a passagem do tempo em sua música. Foi fazer 50 anos e, pronto, começou a falar no retrato do artista quando moço, nas rugas pregadas no canto da boca como estranho sorriso, no amor que seguirá o outro apenas como encantado... Chico deu bandeira e sentiu mesmo que havia chegado àquela idade em que não há mais desculpas. Mas mostrou também que é uma idade em que há inúmeras possibilidades.
O problema do tempo - ou melhor, da nossa relação com o tempo - é que ele é o contrário de um sapato novo. O sapato alarga-se com o uso, amolda-se ao nosso pé, acompanha nosso caminhar. O tempo, não. Conforme passa, estreita-se, aperta cada vez mais, reduz-se. O tempo é o avesso do sapato.
Nossa necessidade de tempo torna-se mais urgente. E isso está se refletindo na arte em geral. Ou será o meu olhar que se liga agora nessas coisas? No filme "Meia Noite em Paris", a mais recente obra-prima do mestre Woody Allen, é a nostalgia por um tempo que não vivemos que move a história. O passado idealizado mostra-se mais confiável que o futuro potencialmente dececpionante. É em busca do tempo em que os ídolos se frequentavam em busca de inspiração para suas futuras obras que o escritor do filme caminha por Paris. E a gente acredita mesmo nisso, por várias razões: por que quer acreditar, primeiramente.
Segundo, por que cidades como Paris, Sevilha, Ouro Preto, Paraty, uns pedaços do Rio e São Luis do Maranhão, Lisboa, Recife, Istambul, Salvador e alguns lados especiais de São Paulo (sim, é a minha lista), esses lugares guardam secretas portas para o passado de glórias, dores, suspiros, amores, festas... Gostaríamos todos de encontrar a passagem na plataforma do trem em Londres, como qualquer Harry Potter. Nestas cidades, a gente caminha sempre à espreita de alguma figura dos tempos idos. E não estranharíamos entrar por uma porta e cair no meio da sala em que Manet pintava, Proust escrevia, e por aí em diante.
Não é a primeira vez que a capital da França desperta esses devaneios criativos. Em um filme russo de 1993, "Salada russa em Paris", personagens de uma Moscou caindo aos pedaços, sem comida nem energia, encontram uma porta mágica por onde chegam à Paris de hoje. É uma comédia ácida, deliciosa, que prova ser Paris a inspiração de todas as viagens pelo tempo. Mas ela não é a única.
Às vezes, o tempo escorre pelas veias de um quintal abandonado. É o tema da peça "O Jardim", do dramaturgo Leonardo Moreira, em cartaz no Sesc Belenzinho. A peça fala da passagem do tempo em uma família, sempre reunida no jardim da casa. É uma encenação criativa (mais criativa que o texto em si, aliás), que passa ao público a sensação de inevitável confronto com o tempo. São três cenas representadas ao mesmo tempo para três platéias e, conforme a peça acontece, você descobre o que aconteceu com cada personagem - ou o que aconteceu para eles agirem do jeito que agem.
Não chega a ser um recurso inédito. Em 1937, o inglês J. B. Priestley escreveu o drama "O Tempo e os Conways", em que o vaivém das cenas conta a história de uma família devastada pela dor. No terceiro ato, nosso choque vem de saber o que ocorreu com aquelas figuras cheias de esperanças e planos. O Grupo Tapa fez uma belíssima montagem dessa peça nos anos 80.
Sentiríamos choque semelhante se pudéssemos prever o futuro. Até o momento sabemos apenas que um dia tudo acaba. Mas, ao contrário das criaturas de Priestley, de Allen e do personagem de um conto de Machado de Assis, não jogamos a toalha, nem desistimos de viver, já que - segundo a figura de Machado - tudo é inútil. Pelo contrário, agimos e jogamos com vontade de vencer, mesmo quando o placar dá empate.
O tempo realmente nos absorve.

Um comentário:

  1. Mário, qaue lindo texto!
    Brinco sempre dizendo que nada é mais democrático que o tempo, que "chega" para todos!
    As referências aos filmes e peças q vc trouxe para esse post são esclarecedoras. Fiquei com a grata impressão no adorável filme de Allen de que quanto é bom estar aqui e agora. Por mais agradável que fora ao persongem voltar a Paris e conhecer os ídolos/artistas dos anos 20! Sua trajetória é mesmo na Paris de 2011!
    Bjs e parabéns por essa delícia de texto!
    Maurício

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