Há cerca de um mês, cutucado por uma crítica imbecil publicada na Ilustrada a respeito da peça “Deus da Carnificina”, de Yasmina Reza, em cartaz no Teatro Vivo, escrevi uma espécie de réplica, que acabou não sendo publicada. Com ligeira atualização, eis o artigo.
Numa sociedade em que o direito à felicidade é assunto do Supremo Tribunal Federal e na qual grupos organizados constroem canaletas politicamente corretas por onde acham que o humor deve seguir, não é de estranhar o comentário que uma mulher de meia-idade fez ao sair de uma sessão de “Vamos?”: “A gente ri muito, mas (a peça) é inteligente”, dizia ela em tom elogioso. Associar o riso à falta de discernimento não é culpa dessa mulher. Rir por simples prazer é visto como algo tão menosprezível que até ganhou uma expressão pejorativa: o “riso fácil”.
A expressão, bastante utilizada por críticos da programação cultural, tornou-se um chavão tão vulgar quanto chamar feijoada de suculenta. Atualmente, costuma colar-se a qualquer texto teatral que faça o público chorar de rir e, até, aplaudir em cena aberta. Concordo que há atores especialistas em puxar a cena para si, esquecendo o texto, os colegas e jogando para o público. Mas em nenhum momento o espectador reclama de dificuldades para rir.
Recentemente, a Ilustrada publicou uma crítica à montagem brasileira da peça “Deus da Carnificina”, da franco-argelina Yasmina Reza, na qual se dizia que a direção do espetáculo “consegue tornar prazeroso vermos atores de tamanho calibre se comportando mal no palco”. Para mim, isso é elogio: se o texto é bom, a direção é esperta e os atores, bacanas, por que eu não veria a peça? Entretanto, o título advertia para o efeito do “riso fácil”, como uma micose que tivesse consumido a pureza do texto.
O crítico rotula o efeito cômico de uma peça como sendo de “riso fácil”. Mas aí aparece um problema irônico: não existe riso difícil! Portanto, como um riso pode ser tachado de “fácil”? Fazer comédia é um trabalho complexo: além de a situação apresentada conduzir ao riso, as frases devem ter o número certo de sílabas para que o ritmo e a sonoridade das palavras provoquem uma sonora gargalhada. O ator com tempo cômico é aquele que sabe falar o texto, ao mesmo tempo que sente a respiração da plateia, fazendo as pausas no momento preciso, nem um segundo aquém ou além – acreditem, numa boa comédia nada é por acaso.
Qualquer profissional – autor, ator ou diretor – que leve a comédia a sério sabe que o riso só deve ser difícil para quem o produz, escrevendo ou atuando com rigor matemático. Para o espectador, a risada deve ser fácil e prazerosa – e se ela produz reflexão depois de apagadas as luzes do palco, melhor ainda. Acontece que nenhum dramaturgo do mundo real consegue determinar o pensamento do espectador. Da plateia, ele pode se identificar plenamente com o personagem de uma comédia rasgada ou passar o tempo todo pensando em pizza durante a montagem deslumbrante de qualquer texto denso.
Ao atribuir a uma comédia o carimbo de riso fácil, o crítico nega a quem ri o direito de raciocinar por conta própria. Parece que só mesmo a expressão circunspecta é que leva a alguma reflexão. Observar os homens inferiores – segundo a classificação aristotélica – pode, sim, nos ensinar muitas coisas. Mesmo o filósofo francês Henri Bergson (1859-1941), que não via lá muita profundidade na comédia, dedicou um livro inteiro ao tema, “O Riso”, e nele estabeleceu parâmetros muito interessantes de análise.
Um desses parâmetros mostra que sempre riremos bastante de personagens demasiadamente rígidos em suas convicções , por uma razão simples: a vida real exige de nós um constante jogo de cintura. Um personagem sem esse molejo é fatalmente cômico. Não seria esse o caso das criaturas apresentadas por Yasmine Reza em sua peça? Afinal, são representantes da classe média bem educada que se encontram para resolver, civilizadamente, o entrevero de seus filhos na escola. A reunião formal vai descambando em cenas até escatológicas e divertidíssimas.
Os pontos que mais incomodaram a “crítica” da Ilustrada, na montagem brasileira, eram também os que mais risadas provocavam na apresentação do mesmo texto em Paris, há cerca de 4 anos. A plateia vinha abaixo com as estripulias dos dois casais de classe média que se desmoronam diante do público – especialmente na cena em que a visitante vomita no livro da dona da casa ou quando ela joga o celular do marido no vaso de flores. Estrelada por Isabelle Huppert, a montagem foi dirigida pela própria autora, a quem dificilmente se poderá acusar de não ter entendido o texto.
Birrenta, a jornalista brasileira cismou que um ator – Orã Figueiredo – exagerava no apelo do riso frouxo da plateia. Enganou-se a pobre jornalista. Se há alguma diferença nas atuações daqui e da França, é no personagem Alain, vivivo por Paulo Betti. Em Paris, o ator que fazia o personagem era um escândalo, dominava o tempo cômico como poucos que já vi. A plateia se divertia a cada gesto dele. Vendo a apresentação em São Paulo, fiquei pensando porque Betti não arrancava a mesma intensidade de riso, embora esteja muito bem em cena. Foi triste entender: o personagem do advogado lobista, que defende um laboratório farmacêutico envolvido com um remédio de graves efeitos colaterais, na França, era realmente motivo de piada. Eles têm esse tipo de gente lá, claro. Mas o parisiense médio acha isso tão absurdo, que ri. Aqui, o tipo do lobista escroto é tão comum, está todo dia no noticiário, que ninguém na plateia do Teatro Vivo vê motivos especiais pra dar risada..
O linguista russo Mikahil Bakhtin (1895-1975), quando pesquisou as origens do riso medieval e renascentista na obra de François Rabelais, acabou por iluminar a pouco reconhecida história da comédia. Quando explica que o homem medieval ria de tudo que se referia à porção inferior do corpo – alimentação, metabolismo, sexo -, Bakhtin nos ajuda a entender por que até hoje plateias do mundo inteiro vão rir durante o desastrado vômito da visitante no livro de sua anfitriã, em “Deus da Carnificina”. Quebrar o mundo, virá-lo do avesso e chacoalhar a formalidade são atitudes que mais provocam o riso sempre que as vemos acontecer.
Talvez o “pecado” da comédia – em geral, não somente de “Deus da Carnificina”- seja tratar o mundo com a inclemência que ele merece. E também com uma absoluta e anticristã falta de modéstia. “Eu sou perfeito, os outros é que cometem as gafes, os vexames, que passam vergonha. São os outros os inferiores.” Talvez esteja aí a birra que os críticos alimentam contra os textos cômicos: provavelmente eles acham que o homem só respeita aquilo que inveja. Nada disso, senhores. Vergonha alheia também faz avançar a humanidade. Ou, pelo menos, deveria.