
Minha mãe tinha uma Tia Senhora. Lembro de, entre criança e adolescente, ter visitado a parente lá nos interiores de Pernambuco. Não lembro da cara, mas sempre me senti fascinado pelo nome - tia Senhora. Um batismo, pelo jeito, comum aos pernambucanos: em "Álbum de Família", Nelson Rodrigues dá esse nome a uma das personagens da tragédia. Nas casas dos familiares e amigos do sertão, as paredes eram decoradas com fotos, muitas fotos. Na casa de meu avô materno, em Jupi, o longo corredor era marcado pelas fotos de casamento de todas as filhas. "Como papai era novo! E a Tia, que magrinha!"
Lembro também que na casa de outro avô, 'seu' Antônio, já vivendo em São Paulo, migrante vindo de pau de arara com 9 dos 11 filhos, havia o retrato pintado do casal mais velho. Expressões sérias, porque naquele tempo ninguém ria pras fotos. Registrar a imagem era coisa séria. Nem os artistas riam, ao posar no melhor ângulo para sua legião de fãs. Mesmo sem fãs, meus avós sabiam que aquele momento importante ficaria para sempre. Por ironia, sabe-se lá onde foi parar o retrato pintado dos meus avós.
Perdidos no tempo, os retratos de tantos parentes e conhecidos voltaram às paredes da memória, enquanto visitava a exposição "Fotopinturas", na Galeria Estação, em Pinheiros. A mostra reúne 150 trabalhos da coleção particular de Titus Riedl, um sociólogo alemão que mora no sertão do Ceará há 16 anos. A curadoria de Eder Chiodetto selecionou trabalhos não necessariamente bonitos, do ponto de vista estético, mas instigantes, porque lidam com a reconstrução do real.
No texto do catálogo, Eder conta um pouco da origem dessa técnica - partir de retratos oficiais, formais, para o quadro pintado a cores, elemento praticamente obrigatório em todas as casas nordestinas a partir de 1945. Os retratados não se contentavam em ver a própria imagem reproduzida em cores. Buscavam melhorá-la, ajeitando o cabelo pixaim, a testa assim ou assado... e juntavam todos os membros da família no mesmo retrato, ainda que misturassem mortos e vivos, jovens e velhos. A realidade era o que se queria mostrar.
Da coleção de Riedl fazem parte muitos retratos rejeitados pelos clientes dos foto-pintores. O trabalho talvez não tivesse resultado como eles queriam, vai saber, o artista foi realista demais e não corrigiu o olho estrábico ou o excesso de rugas. Havia também a quebra de decoro - homens deviam sempre ser retratados de terno e gravata e, se não aparecessem assim no retrato, não valia.
Na mesma semana em que um jovem esquizofrênico dizimou 12 famílias, matando seus filhos na escola, eu recolhia em baús perdidos na memória trapos e fiapos que me ajudaram a chegar até aqui. Quem recria a realidade, hoje em dia, sou eu. Com minhas peças, contos, roteiros, ideias. Embelezo e enfeio, arrisco, carrego na tinta, erro no verbo, mas exponho, tal qual um retrato colorido na parede, os fantasmas camaradas que habitam minha imaginação. Dou prosseguimento ao sonho de Tia Senhora e Vô Antonio, mesmo sabendo que, deles, nem o retrato na parede restou.
A exposição Fotopinturas fica em cartaz até 21 de maio, na Galeria Estação (Rua Ferreira de Araújo, 625, Pinheiros). Conforme a hora, você sai da mostra e filosofa à vontade entre chopes e bolinhos do Pirajá, ali pertinho.