domingo, 13 de junho de 2010

Doze de Junho



Tem data que fica na memória. 12 de junho, por exemplo, resplandesce no meu diário íntimo. Mesmo que eu quisesse esquecer, o sistema capitalista inteiro se mobiliza pra me lembrar que 12 de junho tá aí, tá chegando, não esqueça, etc etc. Num dia 12 de junho, 29 anos atrás, eu tomei meu primeiro avião. Acho que fazia sol, já não lembro. Mas não esqueço a data e toda vez que escuto uma música do Caetano, tenho uma fuga rápida para o pretérito mais que perfeito. "Minha mãe chorava em ai, minha irmã chorava em ui e eu nem olhava pra trás". No dia em que eu fui embora - de casa e do país - não teve nada demais. A não ser pra mim.



Meu primeiro voo foi para a Europa, a bordo de um avião da Lineas Aereas Paraguayas, a LAP. Naquele século, viajar de avião era chique. Viajar para fora do país era uma coisa. Viajar para a Europa, então, era tipo sonho dourado. Mesmo que fosse a bordo de um avião da LAP. O destino final era Madri, mas a passagem baratíssima dava direito a um percurso de romaria: Campinas (sim, saía de Viracopos) - Assunção - Salvador - Madri. Acho que a viagem durou umas 500 horas, mas era barato e, pra quem tava habituado a ir e voltar de Pernambuco em possantes ônibus da São Geraldo ou da Itapemirim, 500 horas eram bico. Era avião, ora bolas.

A aeromoça falava qualquer idioma, menos português. Acho que não falava espanhol também. Devia ser guarani. Vejam que falta faz a cultura geral. Vai ver, era guarani e por isso ela não entendia quando eu pedia "água". "No compreendo". Meu Deus, como será água em espanhol? O Wanderley, que viajava comigo, remexia nas raízes familiares hispânicas e concluía que água era água. "No compreendo". Deve ser por isso que, atualmente, bebo água feito um camelo toda vez que embarco num avião. Trauma.

Foi nessa viagem que descobri uma coisa fascinante. E assustadora. As asas dos aviões não são inteiriças. São feitas de pedaços que se dobram, abrem, mexem, tudo para fazer o bicho acelerar ou frear, quando pousa. Como eu não sabia disso, levei um puta susto quando o avião pousou em Madri e as asas começaram a se 'desmontar' para todo lado. Profeta da desgraça, eu só acertei em não sair gritando pelo avião, já que ninguém parecia se importar com o fato. Devia ser normal, mesmo que fosse esquisito. Era.

Juro que até hoje, toda vez que o avião pousa, eu olho as asas e lembro disso. Do meu susto. Fico contente em saber que ainda sobrevive em mim o capiau espantado, que saiu da zona norte de São Paulo para a Gran Via de Madri, sem nem imaginar que era verão na Europa e o sol custava a se por. Não falava espanhol, tatibitava no inglês, o francês não chegava ao oui, mon amour. E ainda assim eu embarquei naquele avião da LAP num dia 12 de junho.

Não vou me gabar nem cantar de galo, assumindo uma postura corajosa que nunca existiu. O corajoso desafia os medos e eu acho que nem medo tive. Não fazia ideia do que ia encontrar, ponto. Tava apaixonado, tava com sede de vida e fome de mundo. Minha agenda estava com as páginas em branco e o que ficou escrito nela foi porque uma coisa puxa a outra, a vida não para e tinha razão o Caetano quando cantava que era preciso estar atento e forte. Não havia tempo pra temer nada. Eu era um tropicalista na prática.

Uns meses depois daquele 12 de junho, eu caminhava sozinho por Lisboa, acho que pelo Rocio, no centro. Era noite e eu ia pro metrô, quando resolvi subir a pé a Avenida da Liberdade, olhando os turistas que tomavam seus drinques nos bares do passeio público. E eu sem um puto no bolso, a não ser o bilhete do metro. Havia muita estrela no céu - o céu de Lisboa é uma coisa inesquecível, de dia ou de noite, o motivo eu não sei, só sei que é. E eu, sozinho ali, cantarolando "Mamãe coragem", do Caetano. "A vida é assim mesmo, eu fui embora" e andava. "Eu vim, eu quis, eu fiz, seja feliz, mamãe, não chore". E eu chorei. A gente sempre chora no próprio parto.

14 comentários:

  1. Me tocou. Acho que estou emotivo com a iminente partida para terras estrangeiras.

    Abs.

    Cauê

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  2. Discípulo querido, pelo menos agora vc parte sabendo que as asas dos aviões são feitas de várias partes... Um susto a menos.

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  3. Poesia pura, menino...
    Presente pra gente.

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  4. Adoro seu texto Mario...

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  5. Querido Mario!!
    Estava em sua festa de despedida e me recordo do orgulho enorme que sentia de saber que meu amigo Mário iria fazer o que "disse que faria" e que, estava fazendo aquilo que nós, que eramos lá do Jaçanã sentíamos vontade de fazer: conhecer o mundo. Ainda guardo em minha caixinha de recordações uma foto sua com o Vandeco e mais uma amiga, nela seu sorriso é largo os cabelos estão mais longos, e cara: como você era jovem e corajoso. No verso você explica que está em frente a Escola de Artes de Bordeaux e pede que eu lhe mande alguma foto para colocar no seu quarto, acho que não mandei a tal foto e não sei se lhe escrevi muitas vezes, o que me lembro é que senti uma saudade danada de você. Afinal de contas você era o meu "amigo que tinha ido morar na europa", tempos legais, não é mesmo? Tempos em que alguns de nós que tiveram um pouco mais de coragem, que se expuseram um pouco mais, que se arriscaram pouco mais, experimentaram emoções muito singulares. Confesso que na época senti um desejo enorme de ir com você, mas não fui e fiquei esperando sua volta, é difícil de acreditar que se passaram 29 anos....foram tempos muito legais!!!
    Um beijo Grande.
    Ângela

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  6. Dedé, Jô... obrigado...

    Angelita... lembrei agora das cartas que te escrevia. Longas cartas, escritas ao longo de vários dias (pra quem não sabe, eu odeio escrever a mão e tenho, por isso, uma letra pavorosa). A descoberta do mundo, imitando Clarice. Modestamente. Beijo enorme, enorme.

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  7. E por pouco eu não peguei meu fundo de garantia do banco e fui te encontrar. Lembro que parei e pensei que depois eu voltaria sem trabalho, o país naquela merda... Foi meio triste, das poucas vezes que agi de forma madura na vida, mas preferi ficar.
    Devo ter umas cartas tuas tb. Lembro que te escrevi falando da morte da Elis.
    Você foi muito corajoso, sim, Mário, não inventou perigos, encarou.
    Eu não me arrependo de não ter ido, acho que atendi minha intuição. Hoje sei que viajar não é nem nunca foi um grande prazer para mim.
    Nada como ter coragem de fazer ou não fazer as coisas, desde que as decisões sejam na direção dos nossos desejos.
    A gente é foda.

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  8. Nossa, a morte da Elis! Eu lembro direitinho... Só fiquei sabendo uns 3 dias depois... uma neve caindo... a morte da Elis me lembra frio e neve. Em Paris.
    Realmente, o país tava numa pindaíba. Economica e política. A gente vivia sob o regime militar e a francesa vinha perguntar como a gente conseguia, lá em Paris, fazer um baile de carnaval sabendo que aqui tava em plena ditadura...
    Mas difícil mesmo foi explicar em francês porque a greve dos bicheiros, em 82, provocou tal tumulto no Rio, que o secretário de segurança foi à TV pedir pra eles retomaram as atividades...

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  9. Um adendo, depois de ler esses comentários: Abreu guarda os vários postais que você mandava de suas viagens. De cabeça lembro de um do Alaska, um de Praga...
    Chato isso de não mandar mais cartões... Eu ainda mando...

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  10. Ah, então é graças a pessoas como a Adélia que ainda vemos postais à venda no mundo todo... Eu sempre me pergunto, quem manda? Tá explicado.
    (gente, que honra, Luis Alberto de Abreu guarda meus postais!!!! Ganhei o dia!)

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  11. Máriooo, 29 anos!!! Em agosto precisaremos comemorar a data do nosso primeiro encontro!!! Nunca me esquecerei daquele cara meio dormindo vindo na minha direção num começo de tarde em Paris. Puta sacanagem não ir me buscar na gare! rs

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  12. Belo texto Mário. A memória é nosso maior parceiro. Impressionante como as coisas vão ficando lá, quietinhas, e um dia ressurgem, mais ricas do que a gente imaginava.

    A volta à Italia de meu avô também foi muito marcante para mim, andar nas mesmas ruas em que ele andava, pisar o mesmo chão.

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  13. Registre-se aqui a volta triunfal de Luiz Vita, o brasileirinho que abalou Paris no último mês...

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  14. nossa
    morri!

    adorei teu texto, aliás, o blog todo! parabéns!

    quando puder, mande um oi!

    abs

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