quarta-feira, 21 de abril de 2010

A desembargadora e o pedreiro


Passei vários dias pensando no que escrever sobre o caso do pedreiro suicida de Luiziânia. O serial killer de meninos pobres, libertado por um juiz , matou seis moleques e, novamente preso, foi encontrado morto em sua cela, pendurado a dois metros do chão... Fala sério, ia escrever o quê sobre o caso? A história é tão cheia de nonsense e sangue... Qualquer comentário vira um pleonasmo e, aparentemente, só nos resta acompanhar de "olhos boquiabertos" (como escreveu uma repórter) as declarações do juiz, que dormia tranquilo por ter seguido a lei ao pé da letra. E que se danem as seis famílias enlutadas.

Aí o pedreiro se matou e é claro que qualquer teoria conspiratória encontraria terreno fértil para germinar. Alguém viu na TV a corda que o pedreiro fez para se enforcar, usando retalhos do colchão? O homem era um talento desperdiçado, um artesão de mão cheia, um tecelão caprichoso, de raro senso estético. Era uma corda perfeita e todo mundo achou normal. É claro que no Brasil as autoridades têm o dom de transformar a realidade ao seu prazer e conveniência. Exceto pelas seis famílias enlutadas (desculpem tocar novamente nesses pobres chorões), todos dormem sossegados agora que o serial killer passou desta pra melhor. À família dele, até o momento, foi negado o direito do sepultamento, pois é preciso esperar o fim das investigações. Cruel, cruel.

E chega a notícia de Santa Catarina, terra de gente loira e civilizada (dizem), onde tudo é uma amostra do país que poderia dar certo (também dizem). Lá, um rapaz apanhado numa blitz de trânsito, com o carro entorpecido de tantas multas não pagas, apela para a mãe - já que os rapazes de hoje não sabem fazer nada sem o apoio de pais superprotetores. A mãe correu para ajudar o filhote e, lá pelas tantas, do alto do clássico você-sabe-com-quem-está-falando, dá uma carteirada no PM. "Sou desembargadora do Tribunal de Justiça", ao que o PM responde: "Pois devia dar o exemplo e seguir a lei". É bem capaz desse policial atrevido perder o cargo e ser processado por ter peitado uma desembargadora.

Aproveito a ocasião para tentar esclarecer uma dúvida que me acompanha há anos: o que faz um(a) desembargador(a)? Desembarga? É tipo assim um comendador, que só 'comenda'?

Em vez de se indignar com a carteirada, registrada em filme no celular de outro PM, a Associação dos Magistrados de Santa Catarina emitiu nota de apoio à colega, que teria sido ofendida por um vulgar policial militar. O espírito de corpo se sobrepõe à vergonha e à decência. Na notícia, a fulana já pagou as dívidas, que eram muitas, tirou o carro do Detran catarinense e sumiu sem dar notícia. No Brasil, quando autoridade carteirista some sem deixar rastro é sinal de culpa no cartório.

Isso me fez ficar pensando nas mães enlutadas de Luiziânia. E também na mãe do pedreiro serial killer. Tão mães quanto essa doutora, elas não tiveram chance de mostrar se também são superprotetoras, nem receberam alguma moção de apoio. Não sei se existe a associação das mães de meninos molestados por tarados libertados pela justiça... ou mesmo uma federação das mães de molestadores sexuais... Mas devo deduzir que elas também estão sofrendo e não têm como dar carteirada - com o RG puído, talvez? Mas RG sem pedigree não conta pra nada.

Agora que o rapaz, dizem, se matou, a coisa vai ficar por isso mesmo. Ninguém teve culpa de nada e os meninos morreram porque deram corda a um estranho... E daqui a uns 30 ou 60 dias, a família do pedreiro recolhe seu corpo congelado e enterra, sem tempo de avisar algum conhecido e até sem lágrimas nos olhos, porque até lá, secou tudo.

Não tive pena dele, não. Era um doente que deu o azar de encontrar pela frente uma equipe de profissionais incompetentes, preguiçosos e que julgam qualquer pobre merecedor apenas de descaso. Um doido a mais ou a menos na rua, que mal faz? Esse fez. Matou seis meninos e teria matado mais, se não fosse preso a tempo. Com a dele, são sete cadáveres na conta de profissionais - psicólogos, médicos, advogados, juízes -, cujos nomes mereciam ser expostos em praça pública, pra servir de exemplo e alerta. Sete famílias enlutadas são as credoras dessa fatura.

Enquanto isso, a desembargadora catarinense desembarga sua carteira pra salvaguardar o filhote dos PMs sem coração.

8 comentários:

  1. Brilhante como sempre, Mario. Curioso o termo vulgar policial militar. Somos um país de vulgares, né. Um país de gente barata, ao contrário de gente que É um barato. É triste, tudo. Falta-nos coragem pra sermos idôneos, né. Falta-nos mesmo vergonha na cara, ou, lugar comum: educação. Seu post me lembrou um caso que chocou (além de tantos outros), lendo a "biografia" do Caio Fernando Abreu: diz que ele, sendo um dos entrevistadores da Rachel de Queiroz no programa Roda Viva, nos idos dos 80', retirou-se da bancada, ao perceber durante a entrevista, que a escritora havia sido "conivente" com alguns atos da ditadura militar, que agonizava naquele momento. Saiu, assim, programa ao vivo, indignado com a descoberta. É coragem? É princípio? Acho que sim. Talvez nos falte isso.
    ps. ah, agora I follow you no twitter tb!! :))

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  2. Eu assisti esse programa, Heitor, e tenho dúvidas sobre a "coragem" do Caio. Não era segredo pra ninguém que a Rachel era parente do Castelo Branco, ligada à oligarquia nordestina. A atitude dele teve aquele misto de ousadia e grosseria para com a velhota.
    Nem todo mundo é oposição e há que se conviver com isso.
    Atualmente, vivemos um tempo de classe artística vinculadíssima ao poder estabelecido e nem por isso o trabalho desses artistas é questionado por seu valor.
    É uma looooooooooonga discussão.

    No twitter também???!!! rs.

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  3. Mário, ótimo texto, esses dois fatos demonstram que, de fato, a lei não é igual para todos, embora a Constituição diga que sim. No Brasil e em qualquer lugar do mundo, quem é ou está no poder leva vantagem. olha, vou usar mais esse texto seu para uma discussão em sala de aula, citarei o blog, o autor e os elogios, ok!!!
    Abs. Edi

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  4. E a gente tem de preservar a própria sanidade e encontrar sentido para continuarmos vivos em meio a tanta brutalidade. .
    Depois tem gente que não entende a nossa índole "pacífica".
    O povo brasileiro sabe muito bem do que a elite é capaz, memoria da pele da escravidão, se cala por medo.

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  5. É triste, né... Imagina o sofrimento das famílias.
    Mas tem muita coisa errada acontecendo a nossa volta e a gente nem percebe, maioria das vezes.

    Beijão,tio! ;)

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  6. Gente, que chique! Minha própria sobrinha! Futura publicitária! Fã de Linkin Park e de Korn (!!!)... Bem vinda, Su!!!! bjs

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  7. Pois é, Mário, leio essas notícias no jornal, fico estarrecido como todo mundo e não consigo expressar nada. Fico imobilizado. Seu texto, com a ponta de ironia que você é capaz de impor, dá algum sentido de dignidade a isso tudo. Eu, ao contrário, fico analisando cinema, puro exercício sobre a fantasia. Talvez seja uma boa fuga. E, ao mesmo tempo, fico feliz que alguém escreva textos como este. Alguém está vivo. Abraços João Nunes (joao.nunes.p@hotmail.com)

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  8. Olá Mário, bom dia!

    Nessa terça tem apresentação da peça "Por que a criança cozinha na polenta", na qual estou no elenco em SP, no Espaço dos Parlapatões às 21h.

    O espetáculo que narra à trajetória de uma família circense exilada da Romênia na era "stalinista" ganhou 24 prêmios e diversos festivais no segundo semestre de 2009.

    Sua presença me deixaria muito feliz! Caso não tenha compromisso, peço apenas que envie um e-mail p/ eu deixar 1 ingresso (vip) reservado na bilheteria do teatro.

    Email: marcostasp@hotmail.com

    Abraços
    Marcos Felipe

    (não precisa publicar o "comentário")

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