quinta-feira, 11 de novembro de 2010

A cor da China


Para os chineses, a desgraça tem cor pastel. À medida que a história dos amantes condenados avançava em "Lanternas Vermelhas", o esfuziante colorido ia desaparecendo do cenário, dos figurinos e das maquiagens - sobrando apenas para a luz, deslumbrante e explosiva no seu final (na foto ao lado). A tristeza é transparente, lá para os lados de Beijing.

A retina da memória é renitente e segura em suas dobras o que marcou mais. E assim saímos do espetáculo apresentado pelo Balé Nacional da China com os olhos repletos de cores vibrantes e a alma tocada pela triste sina dos amantes, a jovem concubina do senhor feudal e um ator da Ópera de Pequim.

"Lanternas Vermelhas" nasceu como filme em 1991, dirigido pelo mesmo Zhang Yimou que criou o balé. Lanternas, o filme, conquistou o Festival de Veneza e chegou a ser indicado para o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro (perdeu para o suíço "A Viagem da Esperança", alguém lembra?). Lanternas, o balé, estreou em 2001 e não saiu mais de cena.

O que torna o espetáculo marcante não é apenas a história - amores perseguidos sempre conquistam nossa simpatia, já dizia o velho Shakespeare. Há um toque de mestre na maneira com que o cineasta Yimou (também diretor de óperas e de grandes eventos, como as cerimônias dos Jogos Olímpicos de Pequim) desenrola sua trama.

Criada nos anos 50 para ser um exemplo chinês para o mundo na categoria da dança, a companhia de balé nacional mostra que o investimento não foi em vão. Seus bailarinos flutuam, com técnica e graça, mas também com profunda expressividade. O que Zhang Yimou fez foi acrescentar à técnica perfeita alguns dos mais tradicionais elementos da cultura chinesa. E, aqui e ali, dar toques de influências ocidentais - o primeiro solo da jovem concubina, quando descobre que deverá esquecer o seu amor em nome de um casamento político tem movimentos que lembram as coreografias exóticas que Gene Kelly criou para "Cantando na Chuva" e "Sinfonia de Paris".
Alguns dos melhores momentos de "Lanternas Vermelhas" estão justamente nessa união do oriente com o ocidente. A cena do jogo de mah jong, uma espécie de gamão ou dominó pequinês, é deslumbrante, com todos os dançarinos praticamente imóveis em torno das mesas. Outro momento deslumbrante: o defloramento da concubina, uma cena de extrema violência, acontece atrás de uma imensa parede de papel de arroz. O jogo de sombras, uma tradição popular chinesa, explode em dramaticidade. Arrepia. Arrepiante também o final, com o vermelho invadindo o cenário de maneira inesperada, tão inesperada que o público chega a gemer nas poltronas.

Mais que um belo espetáculo de dança, "Lanternas Vermelhas" me deixou com a pulga atrás da orelha. É possível à arte retratar a violência e a dor, sem exibir cenas escatológicas ao público. Óbvio, mas é exatamente aí que está o segredo. Nossos olhos ocidentais ("decadentes", diriam os maoístas, espécie em extinção na Nova China) habituaram-se ao explícito, ao mastigado. As pessoas parecem ter preguiça ou medo de decifrar o que não entenderam à primeira vista. Querem o sangue das tragédias e o esgar da dor.

Talvez por isso, elas nem se importem em consultar as horas no visor do celular, pouco importando se a luz vai incomodar as pessoas ao lado. Nem mesmo se apressam em desligar o celular que toca no meio da sessão - aconteceu ontem com uma senhora, na fileira à minha frente, e eu espero que ela não tenha ainda voltado do lugar distante para onde a mandei, mentalmente. Não se respeita o que não se entende...

Saí daquele universo chinês cheio de dúvidas sobre o que estamos produzindo aqui, entre nós. E quando um espetáculo nos provoca isso, é sinal que valeu a pena ter enfrentado a noite fria no caminho do teatro. É para isso que existe a arte.

4 comentários:

  1. ai, que inveja de você...
    vontade de ser eu lá na platéia...
    aaammmooo d +++++ o filme!
    agora: o desrespeito é generalizado, penetra todos os níveis e locais - inda bem - longe de ser absoluto... ufa!
    é que pouca gente sem noção já é capaz de incomodar muuuuita gente... acho que vem daí a musiquinha do elefante... será? rsrs
    abraço,

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  2. eu acabei não vendo esse espetáculo. beijos, pedrita

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  3. O espetáculo é LINDO, difícil esquecer aquelas imagens. As vezes pareciam cenas de um filme, só que no palco. Ver de perto as expressões dos bailarinos foi de arrepiar. Parabéns texto! Abs. Ricardo

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  4. Mário:
    Chover no molhado.....
    É o mesmo que dizer que seu
    texto é claro, límpido e atraente!
    Mas não tem como não usar chavão nessas horas:
    adorei seu post, tanto pela clareza de ideias como por seu encantamento sobre o espetáculo. Vc me remeteu ao universo chinês sem nem ter saído daqui de frente do PC! rsrsrs
    Parabéns e retorno o questionamento q vc propôs: se o seu post me encantou tanto, vale a pena continuar tentando transmitir em palavras, nos blogs, o que vemos nos palcos e telas!
    bjs
    Maurício
    Mellone

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