O
vento sopra nos palácios. Pelos corredores vazios, tufos de grama seca deslizam
fantasmagóricos. Aturdida, a primeira dama - de robe cor-de-rosa, rolinhos e
pantufas combinando - arregala os olhos em direção ao marido. O homem da casa,
a bordo de um pijama de monograma bordado no bolso, fala para a mulher não
acender a luz. "Deixa eles pensarem que nós estamos dormindo. Ou que não
tem ninguém em casa." Ela, a ingênua, ainda pergunta: "Você não vai falar
com eles?". Ele, veloz: "Tá louca? Deixa assim. Eles cansam e vão
embora."
Deve
ser mais ou menos essa, com pequenas variações, as cenas nos endereços do poder
brasileiro nesses últimos dias. A rua se manifesta em altos brados e o Poder se
faz de morto. Finge que não escutou. Ou, pior ainda, olha com desdém esses
"arroubos juvenis". Há realmente uma técnica de deixar a turba
acalmar e tudo voltar ao de antes no quartel do Abrantes. Quase sempre
funciona, mas o diabo é que às vezes, não. É preciso ficar de olho.
Líderes
carismáticos não surgem da noite para o dia. Getúlio, Jânio, Maluf, Covas, FHC,
Lula. Gostemos ou não desses homens, eles sabiam e sabem cativar seus
seguidores. Têm "o dom". Agora, passemos em revista os atuais chefes
da tribo - puxando o foco para São Paulo: Dilma, Alckmin e Haddad são herdeiros
de figuras de tanta personalidade que a eles sobrou pouco para apresentar.
Geraldo
ainda tem uma experienciazinha maior, há tantos anos no poder. Mas não é por
acaso que ganhou o apelido que colou feito tatuagem: Picolé de Chuchu. Dilma e
Haddad parecem seguir à risca os conselhos de Lula. Acontece que os silêncios
de Lula, devido à trajetória pessoal dele, sempre tiveram mais eloquência do
que os silêncios de Dilma e Haddad.
Nem
a presidente nem o prefeito de São Paulo, muito menos o governador, são líderes
natos. A falta de postura, a consciência de quem não sabe o que fazer quando a coisa
aperta, aparece nessas horas. No começo do mandato, Dilma ainda tentou
mostrar-se a "tia" que dá bronca, que não tolera funcionário
esculachado, etc. Foi sua lua-de-mel com eleitores cansados do presidente que
sacudia a cabeça a cada travessura de seus meninos.
Acontece
que os meninos agora são outros. Vêm das ruas, saíram dos becos e tomaram conta
das praças. Começaram reclamando do aumento das passagens de ônibus e levaram
como troco os esperados olhares de desdém do andar de cima. A moçada insistiu e
o pessoal lá de riba mandou a polícia sentar o pau. Foi o que faltava para que
gente que sorria dos "meninos sonhadores" também decidisse ir às
ruas.
A
turma dos coroas que foi à rua levou um susto. "Falta liderança",
"não existe uma causa específica"... É, amigos, a revolução está
chegando e eu não sei o que vestir (título de uma peça de teatro italiana, dos
anos 80) - mas é preciso saber ler as novas passeatas surgidas à luz das redes
sociais. Nos anos 80, todos vestimos amarelo e fomos reivindicar diretas-já.
Pintamos o rosto e fomos exigir a queda de Collor. Eram outros tempos, outros
manifestos.
A
falta de uma causa única, devemos agradecer e colocar na conta da Democracia
pela qual tanto brigamos. A juventude que está gritando por aí não é uma, é
várias. Ou são várias. Cada passeata não quer apenas a redução da tarifa de
ônibus, mas exige também a não aprovação da PEC-37, reivindica mais cota pra
concursos públicos, defende o aborto e o casamento gay, quer o fim da poluição e
o impeachment de todo mundo que está aí. É assim mesmo, uma variedade grande de
objetivos (e pra nós, que estamos chegando agora nessas paradas, é bom ficar
atento e não ser fotografado ao lado de uma faixa que defende tudo aquilo que
você mais abomina).
Isolados,
cada um desses grupos não tem força para atrair muita gente. Unidos numa só
passeata, eles atraem mais gente, se sentem mais protegidos e voltam pra casa
crentes que, agora sim, o mundo muda. É por isso que não há liderança única.
São vários líderes e, com cada um, a conversa tem um tom.
Com
a turma que vai pra passeata disposta a tacar fogo em tudo, a conversa precisa
ser mais séria - eu acho - sem que isso acabe em tiroteio, feridos e mortos.
Mas, também esse grupo mais incendiário está mandando seu recado aos poderosos:
"O que nos revolta é o descaso do Poder."
Não foi por outro motivo que os alvos
atacados ontem, dia de manifestações pacíficas em sua maioria, foram o
Congresso Nacional, o Palácio dos Bandeirantes e a Assembleia Legislativa do
Rio. A turbinha não tem líder, mas sabe farejar onde viceja o fungo da
corrupção.
Chega
de silêncio, Andar de Cima. Não dá mais pra fazer de conta. A coisa é com
vocês, sim.