terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Posta e deixa rolar...


Quantos posts dura a sua revolta? Você já se habituou a conter sua indignação nos 140 toques do twitter? As redes sociais estão aí e há mesmo quem diga que a primavera árabe começou graças a meia dúzia de twittadas bem dadas. Tenho minhas dúvidas sobre a eficácia do facebook como agente propagador de revolta - pelo menos, do tipo de revolta que derruba ditadores, destitui o senado e avança rumo à liberdade. Como se fosse um personagem de peça enigmática dos anos 70, me pergunto se "O Sistema" permitiria realmente a ampliação descontrolada de um serviço que pode causar tantos danos aos de cima.
Do ponto de vista de brasileiro habituado a navegar nos mares dos perfis e opiniões definitivas das redes, não tenho motivos para muita euforia. Por aqui, o que mais rolou mesmo foi "Lula, vá se tratar no SUS", "Imprensa burguesa ignora A Privataria Tucana" e "Todo mundo morre (ou todo mundo perde o emprego), menos o Sarney". Sinceramente, estamos a anos-luz de uma primavera árabe.
Houve também a caça aos torturadores de animais, com fotos, dados pessoais e chamadas ao apedrejamento moral em infinitos posts. Os acusados foram condenados antes mesmo de qualquer investigação - e as notícias que as coisas não eram bem daquele jeito são ignoradas nas redes. Se for realmente comprovada sua culpa, os tais torturadores merecem ser punidos e não apenas pagar uma multa. Mas não podemos queimar etapas e dar o veredito antes do julgamento. Se queremos que se aplique justiça, devemos começar a partir de nós mesmos. Entretanto, nem os culpados foram punidos, nem os revoltosos partiram para a ação armada. A indignação coube no facebook.
Também pelo lado bom da coisa, a eficácia das redes sociais é duvidosa. Temos pena de quem sofre, choramos por um menino acuado por bullying na França, achincalhamos o prefeito ou o governador ou o/a presidente por não tentar resolver os problemas sociais que se espalham ao nosso redor. Mas poucos de nós levantam realmente o traseiro do sofá e vão à luta, reúnem roupas que não usam mais, compram cestas básicas, aderem ao transporte público ou tomam alguma outra atitude mais elogiável. Trocamos tudo por um post inteligente, de preferência com muita repercussão entre quem nos curte.
Estamos contaminados pelo bom mocismo. Somos instados a nunca mais pisar num supermercado que use sacolas plásticas, mas nem percebemos que a campanha dita ecológica só servirá mesmo para livrar o quitandeiro de pagar pelo saquinho que continua a ser oferecido ao cliente - a diferença é que o Abílio Diniz quer que você pague pelo tal saquinho.
Da mesma forma, os ciclistas - que a colunista Bárbara Gancia apelidou acertadamente de talebikers - gritam em defensa de vias exclusivas. E todo mundo, mesmo quem não diferencia uma Monark de uma Caloi dobrável, inicia a infinita série de posts bem intencionados sobre a ciclovia e sua importância para a sobrevivência da espécie no planeta. Eu defenderei os bikers com muito gosto a partir do momento em que não correr mais o risco de ser atropelado por um deles. Deve ser um dogma da categoria: ciclista ignora sinal vermelho e avança sobre o pedestre com a impiedade de um tubarão faminto. Isso não é bacana.
As lições de convivência e respeito, tão cantadas nas redes sociais, ainda estão no limite das boas intenções. Depois de escrever meia dúzia de palavras legais sobre um tema edificante, nos sentimos liberados a puxar a brasa pra nossa sardinha, dane-se o resto. Desde que possamos espalhar nossos pensamentos profundos e fundamentais sobre qualquer tema humanitário, adquirimos passe livre pra não nos mexermos e fazer o que realmente é preciso para melhorar o mundo.
Uso e acho muito legais o facebook e o twitter. Mas não atribuo a eles a capacidade de melhorar a sociedade em que vivo. Não somente pelo fato de, ali, desfilar muita gente preconceituosa, carola, egoísta e, acima de tudo, sem a menor intimidade com a língua pátria. Tem muita gente legal também. Gente inteligente, bem humorada, do bem. Mas nem os "malvados" partem pra porrada, nem os "bonzinhos" largam sua nuvem. É tudo muito adolescente, tudo muito "amo" ou "odeio", "morte a isso", "fora com aquilo". A convivência, que é bom - e é o melhor desse jogo chamado vida -, está se diluindo nas nuvens do virtual. Isso é real.


terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Monstros sem Freud


A culpa deve ser do Tom e Jerry. Ou do Bip Bip e Coiote. Não há outra explicação razoável para a série de atentados terroristas que tem vitimado cães, no que parece ser a última moda em bestialidade moderna. O sujeito pega o cachorro, amarra no carro e sai arrastando o bicho estrada a fora. Outro enterra o cãozinho recém-nascido ainda vivo. Soube de crianças em um condomínio que brincaram de atirar gatinhos recém-paridos contra a parede - um deles sobreviveu com sequelas cerebrais. Não é culpa dos astros, dos pais nem da água? Então, só pode ser coisa de Tom e Jerry: as pessoas deram pra acreditar que o mundo é um desenho animado, você explode uma bomba aqui, atira o outro pela janela ali - e no quadro seguinte, a vida prossegue como se nada houvera.
Há também a série de mães que se livram de filhos indesejados largando-os na rua, em sacos plásticos, lixeiras, rios. Outro dia, uma mãe atirou os bebês gêmeos pela janela. Para estes casos, bem ou mal, a ciência parece encontrar explicações. Depressão pós-parto, miséria extrema, vício em crack, sempre se saca algum freud da cartola. É aterrorizante pensar que se possa abandonar assim um neném tão frágil, indefeso. O terror cresce quando quem faz isso é a mãe, o pai, o gerador daquela vida. Não há nesse comentário nenhum cristianismo, é pura sensação de sobrevivência da espécie. Tenho comigo a ideia fixa de que lutamos para preservar os nossos, como quem se assegure da continuidade da própria semente.
A maldade contra animais ainda escapa à análise. À minha, pelo menos. Ninguém obriga um sujeito a ter um cão. Eu nunca tive, não gosto de cachorro, procuro evitar a menor intimidade, meus amigos sabem disso. Nem por isso, abafo em mim um envenenador de cães, um atropelador de gatos, um estripador de sapos. Eles lá e eu aqui, esse sempre foi meu lema em relação a bichos. O lema agora mudou: "eles lá, eu aqui e as feras que maltratam bichos na cadeia". Não é possível que a pessoa arraste um pitbull amarrado ao carro, até o bicho perder as patas e a vida, e não receba mais que uma multa. (Pensando bem, é possível, sim: atropeladores embriagados depositam a fiança e voltam para casa, com a carteira de motorista no bolso, sem sequer serem obrigados a pagar o tratamento ou o enterro de suas vítimas).
Para as mães que tentam se livrar de seus filhos, parece, resta alguma esperança: de que ela se arrependa e volte chorando; de que seu estado de penúria seja amenizado e ela tenha condições de amar sua prole... É a esperança na justiça, divina, terrena ou satânica. A vingança pelos inocentes sacrificados. Agora, quem sadicamente tortura animais abdica dessa esperança. Para covardes assim, não há cura na linha do horizonte.
Quem enterra um filhote recém-nascido ainda vivo não deve ter muita noção dos limites que a vida estabelece. O homem que liga o carro e arrasta o cão que certamente o adorava está pouco ligando para o que sentem outros seres humanos. Maltratar um cão ou um velho ou uma criança ou uma mulher são apenas dobraduras do mesmo origami sangrento. Em algum ponto de suas vidas, essas criaturas sádicas deixaram de ser corrigidas ou simplesmente notadas. Alguma falha no sistema houve. Ninguém sai do comportamento de anjo de procissão para o rally do cachorro arrastado em dois ou três dias.
Assistimos perplexos a essas aberrações. Lemos no jornal, vemos na TV. Ficamos chocados. Mas não conheço ninguém que seja parente, amigo, vizinho ou sequer conhecido de um desses torturadores que brotam dos noticiários como gremlins ensandecidos. A vida torna-se um reality show do terror. O sujeito inspira-se num monstro e decide cometer uma atrocidade ainda maior. Busca o holofote, o flash. Seu cão escapará. O Tom sempre sobreviveu aos ataques do Jerry. E o Tom era apenas um gato!
Me pego pensando em como reagiria se um vizinho fosse esse personagem monstruoso. O primo de um amigo. O irmão de um colega de trabalho. O pavor ganharia corpo e voz. Por enquanto, ainda, a água não atingiu meu quintal...

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Muitas Chinas


Quando a escritora Lygia Fagundes Telles embarcou para a China, em setembro de 1960, eu era apenas um bebê de dois meses e meio, nascido abaixo do peso e sem muitas garantias de sobrevida. Lygia já era Lygia, tanto que foi convidada pelo governo chinês, junto com um grupo de intelectuais e artistas, como a atriz Maria della Costa, a visitar o país e constatar com os próprios olhos o que a revolução comunista vinha aprontando havia 10 anos na antiga terra dos mandarins. A tinta revolucionária estava fresca nas paredes, já houvera uma troca de comando na cúpula e a Camarilha dos Quatro, gangue que implantou o terror governista com a Revolução Cultural, ainda não tinha posto as manguinhas de fora. Essa viagem está no delicioso "Passaporte para a China", que a Companhia das Letras acaba de lançar.
O livro é pequeno, menos de 100 páginas, e se você não se segurar é capaz de ir da primeira à última linha enquanto espera ser atendido pelo médico. Ou enquanto o ônibus não chega. Ou enquanto foge das besteiras televisivas. Enfim, é leitura rápida, agradável e - acima de tudo - inspiradora. Dá vontade de terminar o livro já no balcão de qualquer companhia aérea, preferencialmente rumo à China.
O melhor é que Lygia não fez um guia de viagens, nem um querido diário de bordo. Fez crônicas, que foram publicadas aos trancos e barrancos no jornal Última Hora. Na época, não havia facilidades em se transmitir notícias ou enviar encomendas. A viagem em si já era uma maratona: o grupo da escritora saiu do Rio de Janeiro no dia 24 de setembro e só foi pisar em Pequim no dia 29. Pernoitaram em Paris, Praga, Moscou e mais duas cidades da Sibéria, antes de chegar ao destino final.
Não deixava de ter seu charme dormir em Paris e outras cidades. Tomava-se um banho confortável, jantava-se bem, dormia-se na horizontal, feito gente. Hoje em dia, a viagem para a China leva pouco mais de 21 horas, com alguma escala - sem banho nem caminha - em alguma Dubai da vida. Para quem tem medo de avião, como Lygia, a longa duração prolongava o sofrimento de mais uma vez estar a bordo de uma nave misteriosa, piorando a cada etapa, pois as línguas agora não eram mais aquelas que se aprendia no colégio, mas alguma coisa de raiz eslava ou oriental.
Estive na China duas vezes - uma a trabalho, em 1993, e outra, de férias, em 2008. Foram duas Chinas. Agora, que li o livro de Lygia, descubro que há muito mais Chinas do que supõe a nossa vã geografia. A China que Lygia visitou ainda engatinhava no comunismo, havendo mesmo ainda proprietários de casas e terrenos herdados do antigo regime. A primeira China que eu conheci não se abrira para o capitalismo, tentava atrair turistas e investidores, mas pouco oferecia além de suas atrações históricas: era um país ainda agrícola, com uma população mal vestida e maltratada pela vida dura. A segunda China atracara-se de vez com as tentações do dinheiro, exibia-se com todos os brilhos possíveis em sua arquitetura ousada e tripudiava do Ocidente servindo de bandeja tudo o que o consumismo valorizava, em versões assumidamente piratas.
Se na China de Lygia, o líder Mao Tsé Tung era o grande timoneiro, na minha primeira China ele era ainda o modelo a ser seguido. Na new China, era apenas um avozinho cheio de manias a quem os netos tratavam com desdém. Nos anos 60, seria impensável ver Mao enfeitando camisetas, canecas, almofadas e bonés, tal qual um Mickey de olhos rasgados. A minha guia na primeira viagem era uma estudante que impunha um regime de ferro ao grupo - "Temos 20 minutos para visitar a Cidade Proibida" -, mas o segundo era um rapaz bem humorado, que falava espanhol com relativa fluência e que citava o governo sem o medo que seus pais tinham.

No livro, é divertido acompanhar o trajeto entre Pequim e Xangai, as duas mais importantes cidades do país. A primeira, por ser capital, grandiosa, exuberante, megalômana. A segunda por simbolizar, em 1960, o período em que a China foi colonizada por ingleses e franceses. Na época de Lygia, ia-se de trem - 30 horas de viagem! Hoje, pouco mais de 2 horas pelo ar e você deixa o gigantismo pequinês para mergulhar na feérica Xangai, com sua arquitetura ousada, seus serviços de primeiro mundo, seu ar de "cidade de todos". Comum, em 1960 e em 2008, foi a mesma paixão imediata por Xangai.
As viagens eram mais demoradas, viajar para outro país era uma atividade mais elitista, havia o que os nostálgicos chamam de "mais classe" - leia-se "menos pobres". Ir ao aeroporto era quase um programa cultural e até os palitos de dentes que vinham nas bandejas eram guardados como relíquias a ser exibidas aos menos favorecidos. "Olha o saleirinho, que bonitinho!" - o pai do meu amigo João Alberto tinha viajado de avião (a trabalho!) e trouxera pra nos mostrar o saleiro e o pimenteiro distribuídos na Varig. O cobertor de lã, então, chamava mais a atenção do que qualquer tapete marroquino com 1200 fios.
Dos Telles aos Viana, a China mudou - mas mudou também o mundo e a indústria das viagens. Para atender a um público cada vez maior e, claro, embolsar um lucro mais polpudinho, as companhias aéreas agora já não capricham tanto - porque acham que não precisam. O sal vem num saquinho de papel, os talheres são de plástico e a refeição, idem. O espaço das poltronas seria perfeito se o passageiro não teimasse em ter 2 pernas, quadris, costas...
As viagens são mesmo mais rápidas e você chega ao outro lado do mundo sem ao menor ter dormido as oito horas de sono regulamentares. Café preto com pão e manteiga de manhã, pato laqueado no almoço do dia seguinte. Antes, não só por questões de tecnologia, mas também por que o mundo parecia exigir mais tempo das coisas, as viagens eram no gerúndio, iam sendo feitas aos poucos, como se estivéssemos eternamente numa caravela. Hoje, os aviões brincam de Apolo XI e comprimem o tempo e a delicadeza. Até por isso, pra nos lembrar que viajar não era apenas uma maratona de compras e superficialidades disfarçadas de cultura, é que o livro de Lygia merece ser lido. Por ela, claro. Mas principalmente por nós.