sexta-feira, 25 de novembro de 2011

A lei do Hato


Quando ainda era vereador, o hoje deputado Jooji Hato estava em seu carro e foi assaltado por um motoqueiro - ou melhor, pelo carona do motoqueiro, que ia na garupa. Foi traumatizante, diz o deputado, e ninguém duvida. Por conta disso, o político vem há anos tentando emplacar uma lei que proíbe o transporte de caronas em motos. A motocicleta, como todos sabem, tem espaço para duas pessoas - o piloto e seu convidado. Em qualquer lugar do mundo é assim. Menos no Estado de São Paulo, a depender da vontade de Jooji Hato e seus colegas de plenário. Espera-se agora que o anjo que soprou um pouco de bom senso nos ouvidos da então prefeita Marta Suplicy tenha igual fôlego quando o projeto estiver diante do governador Geraldo Alckmin - e, assim como fez a petista, o tucano vete o projeto de lei, sob risco de sair de destaque no grande desfile dos ridículos a que somos expostos pela incansável classe política.
Jooji Hato ficou chocado com o assalto sofrido, qualquer um de nós ficaria. Mas nós não temos a máquina legislativa a nosso serviço. Jooji Hato poderia ter ficado chocado também com o tanto de crianças pedindo esmolas nas esquinas, vendendo bala e pano de prato, nariz escorrendo e medo do adulto que as controla de um ponto adiante. Isso não chocou o vereador-deputado. Nem as hordas de miseráveis que se espalham pelas calçadas de todas as cidades, é só olhar pros lados - mesmo em carros com vidro fumê dão acesso a essa deprimente paisagem.
É mais fácil atacar os motoqueiros - categoria que irrita onze em cada dez motoristas, é verdade, mas nem por isso formada só por assaltantes. Talvez seja difícil pro senhor Hato e sua equipe acreditarem, mas há pessoas que usam motocicletas como... digamos... meio de transporte. Nem digo para trabalhar, mas para se locomover, levar o filho à escola, levar a namorada ao cinema ou a mulher ao trabalho dela. Enfim, as pessoas usam o veículo que o deputado e seus parceiros querem vetar. Aliás, o rasgo de genialidade é proibir a prática da carona nos dias úteis - partindo-se do princípio que assaltantes obedecem a semana inglesa. O deputado e seus assessores confundiram os horários dos ladrões com os dos políticos. Acontece.
O engraçado é que, assim como os jornalistas que pautam seus cadernos e revistas pelo que acontece em seus horizontes cotidianos (quem tem filho pequeno faz matéria de preço de escola, quem sai na noite fala dos bares que frequenta, etc), os políticos pautam seus projetos pelo muito que lhes acontece fora de seus ambientes de trabalho - onde, convenhamos, eles vão muito pouco. O projeto do Hato é assim, nascido de uma traumática experiência pessoal, que teria sido evitada se a cidade fosse mais iluminada e tivesse segurança pública, etc etc.
Mas o Brasil é o país em que se receita aspirina pra combater tumor no cérebro. Tem assalto na saída do banco? Proíbe-se o uso de celular dentro da agência. Aconteceu outro dia comigo: um problema no Bradesco exigia que eu falasse imediatamente com a advogada, mas eu só poderia fazer isso se saísse da agência e perdesse meu lugar na fila... Outra modalidade tipicamente verde-amarela: somos o único país do mundo onde banco 24 horas funciona em horário comercial.
Vivemos também em uma cidade onde gangues andam pela Avenida Paulista agredindo gays, pretos e pobres sempre nas madrugadas - e o policiamento que o governo anuncia acontece das 6 às 22 horas. Tente passar depois disso e você não verá ninguém fardado por quilômetros. É como a turma que faz blitz da lei seca, que só trabalha até as 4 horas - que é quando bares e baladas estão fervendo: os briacos pegam seus carros depois das 4 e tudo bem.
É mais fácil sair proibindo isso e aquilo, em vez de atacar a verdadeira causa dos males. A hipocrisia impera, os governantes relaxam porque sabem que nós, do lado de cá da urna, logo esqueceremos - e muitos desses políticos de quinta retornarão aos cargos, premiando-se aumentos infinitos e, de vez em quando, aprovando leis sem nem sequer se importar se ferem ou não a Lei. Estamos na terra do faz de conta, no labirinto do fauno, onde a polícia finge que protege, o fiscal finge que toma conta e o deputado finge que legisla em nome do povo. Só mesmo os assaltantes e agressores é que levam a coisa a sério.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

O SUS do Lula


Foi como tosse no intervalo de um concerto. Mal saiu a notícia de que Lula teve diagnosticado um câncer na laringe, começaram a pipocar na Internet os mais variados comentários - do apoio solidário às piadas de humor negro. Teve início uma campanha para que o ex-presidente abrisse mão do atendimento em um dos melhores hospitais do país para tratar-se no SUS, o Sistema Único de Saúde mantido aos muitos trancos e abissais barrancos pelo governo federal.
Do outro lado da trincheira, brigava-se pelo respeito às emoções de quem descobre uma doença grave em si mesmo ou em alguém próximo. Era uma briga feia e, como em todo bate-boca por rede social, recheado de agressividade incontida, de ambos os lados. Mais que aversão política, a campanha "Lula, vá se tratar no SUS" revelou que séculos de civilidade não resistem às dinamites grosseiras das redes sociais.
A tecnologia criada para aproximar pessoas dos rincões mais afastados do planeta serve também para implodir a "educação que mamãe nos ensinou". Alguém, num blog ou artigo opinativo, apontou o anonimato como estímulo para que as pessoas manifestem tão abertamente sua deselegância. Não sei se concordo. Conheço alguns dos que ajudaram a espalhar essa campanha pelo facebook e pelo twitter, seus posts vêm assinados, muitos trazem a foto da própria pessoa. Pudor é o novo mico-leão dourado da língua, ameaçado de desuso. Não existe mais vergonha de expor opiniões e sentimentos que, antes, mal eram sussurrados no ouvido do analista. E, quando eram, faziam o paciente sair do consultório de olhos inchados de tanto chorar.

Hoje, não. Assim como o gosto pelo popularesco não é mais apanágio das "empregadinhas" - notem as aspas, por favor, elas têm uma função crítica -, também a brutalidade e a indelicadeza não são mais atributos de gente tosca. Pelo contrário. Quanto mais bem formado o sujeito, quanto mais bem situado na pirâmide social, mais ele se julga portador de um passe que dá livre acesso à grosseria generalizada. É claro que nem todo rico é mal educado, nem todo pobre é um anjo caído do céu. A pirâmide social do meu comentário é aquela que cada criatura constroi para si próprio.

Colonização, escravagismo e outros desvios históricos criaram em nosso DNA coletivo a ideia de que bom mesmo é ser da elite, não precisar trabalhar muito (ou nada) e, sempre que possível, exibir à patuleia desabençoada os sinais de nosso privilégio. "Público", aqui, é sinônimo de "coisa de pobre, de qualquer um". Pior: é sinônimo de "de ninguém". Não zelamos nem pela área comum de nossos prédios, que dirá do transporte ou da escola pública, do qual - graças a Deus - tiramos nossos filhos. Achar que Lula, ao entrar na hipotética fila do SUS, melhoraria o sistema é mascarar hipocritamente a vontade de que ele morra com a senha na mão. Dane-se se o sistema vai melhorar ou não ("eu tenho meu plano de saúde, meia boca, mas meu"), o importante é que ele pague por "tudo o que não fez" pela saúde do Brasil.

Em princípio, eu concordo plenamente com a teoria de que políticos brasileiros deveriam usar os hospitais públicos, o transporte público e o ensino público. Na verdade, eu sou radical e vou mais longe. Acho que todos nós - todos: eu, você, sua vizinha, seu padrasto, seu irmão adotivo, seu ficante - todos nós devíamos usar os serviços públicos pelos quais pagamos altos impostos. O verdadeiro desaforo não é Lula - ex-presidente, que cobra 200 mil dinheiros por palestra, tendo recursos pra pagar um bom plano de saúde que inclua o Sirio-Libanês -, repito, o desaforo não é Lula tratar-se em hospital de elite.

O desaforo é nós não podermos usar os serviços pelos quais pagamos: eu queria chegar no HC e encontrar rapidamente um ortopedista que desse um jeito na minha dor nas costas; eu queria fazer um bom curso bancado pelo Estado ou ir e voltar dos compromissos usando metrô e ônibus confortáveis. Queria voltar do cinema à noite caminhando sem medo por ruas policiadas e até estacionar meu carro na rua sem medo de não encontrá-lo na volta, já que haveria segurança garantida.

Enquanto apertamos o orçamento pra pagar plano de saúde, colégio particular e estacionamento extorsivo, exigimos que Lula use o serviço público que nós evitamos a todo custo. "Ele precisa dar o exemplo", me escreveu uma garota bastante raivosa. E eu perguntei: "exemplo do quê?" De abnegação cristã? Se assim o fizesse, não faltaria quem o acusasse de populismo e até o atacasse por ter furado a fila - maiores de 65 anos podem fazer isso, está na lei. O fundamental é que ele, o iletrado que virou presidente, voltasse a sentir o gosto de um mau atendimento.

Atire a primeira pedra aquele que, tendo nas mãos o diagnóstico de uma doença grave (em si ou em alguém que ame), não faria de tudo pra conseguir o melhor tratamento. Venderia a casa, o carro, abriria mão de vários confortos. Recusar esse direito a qualquer pessoa - de Lula a Sarney, de Zezé de Camargo a Reynaldo Giannechini -, em nome de uma causa partidária ou algo que o desvalha, está abaixo das normas mínimas de civilidade, até para um usuário de facebook.