terça-feira, 26 de julho de 2011

Chico!


Antes de convidar à leitura, vou logo avisando: este é um território chiquista, com evidente e democrático espaço para discordantes, desde que mantido o nível de civilidade. Isso posto, vamos ao post em si. Saiu Chico, o CD novo de Chico Buarque. Mais que novo, é um grande CD. Maior que seus 31 minutos de duração. Poderia ser um resumo da carreira de Chico desde os anos 60, mas é evidente e audível a vontade do compositor de não ser o mesmo, de avançar, de arriscar. Chico escapa do olê olá, com métrica certinha, e abusa do descompasso entre verso e música, as palavras faltam aqui, sobram ali, como que deslocadas. E estão - é esse o segredo.
Como em outros discos anteriores do compositor, Chico começa com um sobrevoo. "Querido diário" mostra as ruas e as pessoas que olham o narrador, oferecem-lhe Deus enquanto ele fala da mulher sem orifício. Chico Buarque, de 1989, abria com "Dois irmãos", lindamente. No álbum Carioca, de 2006, ele começava com "Subúrbio" e falava da cidade que tinha Cristo de costas. Em As Cidades (1998), o abre era "Carioca", aquela que usava o refrão 'gostosa, quentinha tapioca' e falava das meninas com peitinhos de pitomba. É sempre um prólogo, uma situada no tempo e no espaço. Desta vez, não foi diferente.
A pista para Chico está na segunda faixa. Rubato, informa-me o Aurélio, é a "execução caracterizada pelo emprego de certas liberdades rítmicas, num intuito expressivo que depende unicamente do gosto musical do intérprete". Não por acaso, "Rubato" é o título da canção que Chico fez com Jorge Helder. E é ela que explica o disco todo, cheio de quebras, sílabas alongadas, frases aparentemente imperfeitas. O cd é um grande rubato.
Em "Essa pequena", Chico melhor retrata a passagem do tempo. Chico e Caetano estão envelhecendo, isso é fato. Não lembro de outros compositores a explicitar tanto em suas obras como o envelhecer afeta. Chico, há tempos. Caetano, mais nos últimos CDs e shows, apoiado numa ainda novata Maria Gadu. Em "Essa pequena", o narrador de cabelos cinzas já se conformou com as filhas que saíram de casa ( "As minhas meninas", de 87) e agora se espanta com o à vontade da namorada de cabelos vermelhos. "Acho que nem sei direito o que é que ela fala", confessa. "Mas o blues já valeu a pena". Valeu mesmo.
Daí pra frente, é um reencontro com os personagens que Chico cria desde Pedro Pedreiro. "Se eu soubesse" é uma canção de amor inesperado, acompanhado pela voz zizipossiana de Thais Gulin, e de certa maneira nos aproxima da "Renata Maria", de Carioca. "Sou eu", o samba feito em parceria com Ivan Lins, é a voz finalmente dada ao marido de "Deixa a menina", dos anos 80. E o que dizer de Nina, a personagem de uma delicada valsinha? Prima irmã da emigrante de "Iracema voou", só que desta vez, ela não liga a cobrar, mas fala pelo Google Maps. E Chico ainda rima mapa com rapta, toca com vodca - e vai. "Barafunda" é um sambinha gostoso, fala de Cartola, Garrincha e Mandela - e aproxima-se de "Feijoada Completa" e "Futebol", de safras passadas.
O cd termina com "Sinhá", uma tocante criação de Chico e João Bosco. Mais uma vez, como em "O velho Francisco", do álbum Francisco (1987), somos apresentados a um personagem sofrido. Daquela vez, era um velho abandonado num asilo. Agora, é um escravo preso ao tronco e torturado por ter visto a dona nua. Em cinco estrofes, temos o panorama completo. Mais uma vez, fico com a impressão que Chico sabe, como raros, compor sobre gente que mente. Assim como a mulher de "Olhos nos Olhos" sempre me pareceu ainda desesperada pelo amor do homem que a deixou, o escravo de "Sinhá" mente. Ele viu, sim, a sinhazinha nua, mas nem por isso merece o castigo que vai sofrer. A capacidade de deixar entrever uma possível inversão do que está sendo dito é fascinante e é o que me atrai na obra do Chico. E o cd, que começa com um controverso "mulher sem orifício" termina com um homem que tem os olhos furados...



quarta-feira, 20 de julho de 2011

Portinari, para poucos


A menina magricela, de uns 10 anos mais ou menos, estava entre inconsolável e revoltada. "Por que não posso fotografar os quadros que eu quero?", perguntava-se sem obter resposta do segurança gentil (porém desinformado) nem dos pais, de aparência de quem tem pouca intimidade com o ambiente dos museus. A cena se passou domingo no MAM, onde foi aberta uma delicada exposição de Cândido Portinari. Tenho uma tendência quase psicopata de dar informação a quem se encontra perdido na rua e, desta vez, não reprimi meus instintos. Expliquei pra menina que alguns quadros pertenciam a colecionadores particulares, que o emprestavam, mas proibiam fotos. O pai ou a mãe da menina tentavam ajudar. "É pra ninguém fazer cópia e vender na rua". A menina assumiu a frustração e decidiu: "Quando eu ficar grande, vou comprar quadros bem bonitos e deixar todo mundo fotografar". Tomara.
O que gira em torno dessa história é a exposição - recorte de um período curto na vida de Portinari (1903-1962), com vários estudos e rascunhos - bem bacana. Tão bacana, que esqueceu da popularidade de Cândido Portinari. Domingo, dia de entrada grátis, o MAM estava bem cheio, havia fila de espera para entrar. E o grátis não explicava a presença de outras famílias "simples", daquelas que normalmente não se vê em exposição de pintura. Há uma delicadeza nessa visita, a preocupação de o filho aprender alguma coisa nas férias, fora da escola (Portinari é um daqueles nomes que caíram no imaginário popular, virou sinônimo de algo bom no mundo das pinturas). É para esse público que a exposição parece voltar as costas.
Não há a menor explicação didática e, no caso de um artista popular isso é fundamental. No caso do MAM, todo mundo sai desinformado. Por exemplo: mostra-se vários estudos para o preparo de belos murais. Mas onde estão esses murais? Por que não colocar uma foto da Igreja da Pampulha ou do prédio do Ministério da Educação no Rio? Em uma parede, há uma linda série de retratos que Portinari fez de sua mulher, Maria - mas eu só sei que era a mulher dele, porque li a resenha da Vejinha. Quem entra no museu sem saber nada antes sai com o mesmo nível de informação complementar. Pena que a curadoria não tenha pensado nisso.
Lembro que, alguns anos atrás, fiz um curso de produção cultural na Fundação Getúlio Vargas e, numa das palestras, ministrada por um diretor do Masp, ouvi bestificado o seguinte: exposições muito populares não nos interessam, porque atraem um público despreparado, sem pedigree. Numa hora dessas, a função social de um museu, escoa pelo ralo do esnobismo e revela exatamente o que boa parte do mundo da Arte reflete: Arte é para poucos, para os eleitos, para os bacanas. Quem é do povo deve dar graças a Deus por ter televisão e estátua viva na Paulista. Quer pintura? Compra um quadro de palhacinho chorando e passe bem. Deixa o Portinari pros lindos.
Ser didático não significar ser chato. Dá para ensinar sendo lúdico. Quando uma família da
periferia avança o sinal e entra no Museu, está dando sinais claros de que quer mais do que
o domingo de faustão e gugu. Pode não suspirar embevecida, nem comentar que a exposição de Fulano
em Paris era melhor.... Mas chegou ali e não deve ser ignorada.
Às vezes, penso que é justamente a arrogância dos produtores de cultura que afasta
os que querem
aprender alguma coisa. Colocar uma barreira entre "nós" e "eles" ajuda a manter o sistema de castas
em que vivemos. O coronelismo nocivo da política alastra-se no dia a dia e manifesta-se no império
dos chiques sobre os populares, da grande arte sobre a arte popular. Não é um mal exclusivo do Brasil,
é bom que se diga. O cabonismo pirateia-se mundo afora.


sexta-feira, 8 de julho de 2011

Órfãs de filho


Um nunca soube do outro e se não fosse a coincidência de frequentarem as páginas do noticiário nos mesmos dias, certamente não haveria porque ligar Juan a Yoham. Mas ambos tinham muito em comum: eram meninos, brincavam na rua, tinham vários irmãos e foram batizados por suas mães com nomes que buscavam tirá-los da sina madrasta que uniformiza os caminhos de tantos zés, joões e carlinhos. Não deu certo a mandinga. Isso foi outro ponto comum entre os meninos. Ah, e o fato de serem, os dois, pobres.

A bala perdida que atingiu Juan numa favela do Rio e a avalanche de terra que cobriu Yoham, entre São Paulo e Diadema, poderiam ser o ponto final de duas vidinhas curtas, mas não foi bem assim que aconteceu. Juan virou "o menino que desapareceu depois de uma suposta troca de tiros entre policiais e traficantes de uma favela". Sua mãe apareceu em jornais e programas de TV, à espera de uma notícia que não vinha. Suspeita-se que a própria polícia tenha sumido com o menino ferido. Só isso bastaria para transtornar uma mãe, acho eu. Mas a coisa não ficou nisso.

Na semana passada, um corpo de criança foi encontrado num rio, lá pelas redondezas do tiroteio. O circo de sempre - emissoras de TV, policiais querendo aparecer, policiais querendo sumir e, pensava eu, um nó apertado no peito da mãe: "será ele, será o Juan? Deus queira que não". E era um corpo que ninguém conseguia identificar o sexo - esse detalhe mórbido é de uma crueldade alucinante: que estado era o desse corpo, que não permitia diferenciar um pinto de uma xoxota? Será que é o meu filho que está assim, maltratado? E veio a autoridade do Rio dizer que era o corpo de uma menina. Bem ou mal, era uma esperança pra mãe do Juan.

Até que, no começo desta semana, muda o veredito: era mesmo o corpo de Juan, aquele que ninguém sabia identificar. E veio mais uma notícia: o enterro teria que ser antecipado, pois temia-se "alguma coisa de inesperado". E eu só tinha na minha mente a imagem da mãe de Juan, de uma mãe que precisou matar várias vezes o mesmo filho. Quantas vezes ainda ela terá que sofrer essa morte? Não passa pela cabeça das autoridades que a incerteza fere mais que a notícia definitiva?

Depois, veio a tragédia das casas soterradas. Dizem que havia uma obra da prefeitura ali e, de maneira pouco direta, tenta-se jogar a culpa nos soterrados, que insistiam em morar nos lugares de risco. A mãe de Yoham apareceu e disse que teria, sim, mudado com a família para outro canto. Chegou mesmo a achar uma casa de 40 mil reais, mas a prefeitura avisou que só pagava 25 mil - mais ou menos, o novo salário do prefeito. Onde o burocrata da prefeitura encontra um barraco que seja para comprar com 25 mil reais?

"Por 15 mil, perdi o meu filho", disse a mulher. Errou a conta, madame. Seu filho morreu porque o dinheiro que pagamos em impostos reverte-se, quase sempre, em propinas, salários a autoridades inúteis e gastos desnecessários com gabinetes de políticos. Não sobrou muito para tentar livrar algumas pessoas das avalanches. É a vida. Deus quis assim.

Juan e Yoham também morrem a cada vez que suas pequenas tragédias somem dos jornais e dos noticiários. Nem mesmo a gente, classe média que ainda se julga capaz de alguma indignação confortável, nem mesmo a gente estica o pensamento sobre eles. Juan e Yoham duram até a próxima vingança de Norma contra Léo. E daqui a poucos dias, nem mesmo Norma ou Léo farão parte das nossas vidas. Esqueceremos e aguardaremos o próximo vilão, a próxima mocinha, a tragédia seguinte. Tudo anda muito fugaz, nas novelas e na vida.