segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Filme estranho, com gente esquisita


Não há na atual programação de cinema em São Paulo dois filmes tão díspares quanto o uruguaio "Gigante" e o multi-europeu "Anticristo". E, no entanto, não há dois filmes tão aparentados no seu tema primal, a solidão a dois. Em "Gigante", um vigilante se apaixona por uma faxineira. Ambos trabalham para um hipermercado de Montevidéu e ele só a vê pelos monitores de segurança. Depois, passa a segui-la como um obstinado.


Um casal que passa o filme inteiro sem trocar um buenos dias - disso é feito o delicado filme uruguaio que, se não chega a ser nenhuma obra prima, também não faz feio. Retrata duas figuras comuns a qualquer grande cidade, dois deslocados no tempo e no espaço, figuras aprisionados nos fones do mp3, ouvindo sabe-se lá o quê... E é nisso que ignoram um do outro que está o motor do filme.


"Anticristo", a mais recente travessura de Lars von Trier, é de outra cepa. É um filme desagradável, incômodo, chocante. E bom. Um casal entra em parafuso depois de perder o filho num acidente doméstico. O marido terapeuta leva a mulher surtada para uma cabana na floresta, pois é ali que parece residir o medo mais profundo dela... Ao contrário dos personagens uruguaios, os de "Anticristo" falam pelos cotovelos, teorizam, barbarizam - e parece que se entendem menos que os outros.


"Anticristo" é um filme sobre sexo - começa com uma belíssima trepada entre Willem Dafoe e Charlotte Gainsbourg, passa por outras transas desesperadas e culmina com mutilações para tudo que é lado. As cenas beirariam o pornográfico, se não fossem tão desprovidas de prazer visual. O sexo tem uma carga de culpa grande, o prazer é passível de castigo, a tragédia ronda aquele casal apaixonado.


A dedicação do marido, a depressão da mulher, o público acompanha todos os passos da queda - e não gosta disso, não... Mesmo assim, acompanha, porque aquele casal é muito parecido com gente que a gente conhece - eles são bacanas, intelectuais... mas estão tão desconectados do mundo em que vivem quanto o vigilante e a faxineira de "Gigante".


Há em "Anticristo" uma incorreção política genial - a culpa da natureza. A fineza atual nos leva sempre a achar que o homem é um virus destruidor da boa e generosa mãe natureza. Pelo jeito, Lars von Trier não acredita muito nisso. No filme, a natureza assusta, o chão forrado de folhas queima os pés e animais fofinhos, como um cervo e uma raposa, aparecem parindo crias mortas... e estão ali para lembrar que tudo é finito. Decididamente, não é um programa legal pra começar o domingo ou terminar o sábado.


Mas é um filme fundamental, desde que você tenha estômago. Perdemos a capacidade de aceitar o incômodo e preferimos muitas vezes a politicamente correto de butique de um filme tonto como "Bruno" a um soco no espírito, como "Anticristo", que toca na ferida da vítima que dispara a bomba. Talvez não precisasse tanta sangreira, podia ter um pouquinho menos de papo cabeça (não é por acaso que o filme é dedicado a Tarkovski...), mas tem dois atores sensacionais (Charlotte Gainsbourg faturou o prêmio de melhor atriz em Cannes, mereceu) e fica na cabeça da gente por um tempão.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

O cartão vermelho do Eduardo


O que foi mais embaraçoso: o piti do Eduardo Suplicy no Senado ou o Heráclito Fortes ter falado algo que fez sentido? Quando eu me peguei achando que aquele senador piauiense com cara de ator rejeitado no Zorra Total (por falta de qualidade artística) estava falando alguma coisa que prestasse, entrei em pânico. Onde foi parar o meu passado de militância trotskista, de boca de urna pro Lula, de campanha pra Erundina, de... meu Deus! Eu concordava com o Heráclito Fortes! Tudo bem, a coisa foi rápida, porque a gente leva tudo em consideração - mas quando ele disse pro Suplicy que a culpa daquela crise toda é do Lula, nisso ele estava coberto de razão.


É evidente que Eduardo Suplicy fez o discurso que qualquer petista faria antes que a sede pelo poder secasse a garganta da ética. José Sarney envergonha o Senado, sim - e olhe que pra envergonhar este Senado, o cara precisa jogar baixo... Sarney, se tivesse um resquício de pudor em seu bigode já estaria de papo pro ar na sua mansão de São Luís. No mínimo, pra deixar a ralé investigar as denúncias. A investigação não iria muito longe, é ilusão pensar o contrário, mas as aparências se salvariam. Parece pouco, mas não é, não.


Fica difícil acreditar que essa demonstração de cara de pau foi eleita por nós mesmos - nós, como povo, não caso a caso. Fica ainda mais difícil entender porque não há uma tomada nacional de vergonha, para que na próxima eleição esses tipos daninhos sejam banidos. Em que ponto estamos falhando - nós, povo, nós que votamos, pagamos impostos, temos um vocabulário razoável e até formamos opinião aqui e ali. Nossa falha trágica, qual é ela?


Suplicy teria feito um discurso comovente, não fosse a nódoa que paira sobre ele desde a história das passagens aéreas. Não me venham dizer que ele só usou uma, que teve gente usando mais... não existe meio virgem. Ou bem o sujeito advoga e pratica a ética - ou bem ele também passa a compreender as derrapadas alheias. Não é preciso compactuar com elas, mas entendê-las. Eduardo Suplicy, a nossa reserva moral, em quem sempre votei de olhos fechados e em quem muita gente que tem ódio do PT votava... Eduardo Suplicy não poderia ter escorregado.


Mas o fato é que ele escorregou. Pediu desculpas, ok, desculpas aceitas. Daí, sim, dá pra aceitar e entender sua quixotesca performance no Senado na terça-feira. Lutando contra os moinhos de vento do fisiologismo, sem Sancho Pança que o acuda, Suplicy parecia o único sobrevivente de um naufrágio, carregando nas mãos o que restou do "velho PT'. Suplicy acredita no que fala e só isso bastaria para diferenciá-lo de muitos luminares da política. Talvez isso explique o isolamento em que o PT o mantém, colaborando mesmo para que um certo ridículo paire sobre sua figura. Sublinhar o patético de Suplicy, justamente o patético que o torna humano, é uma maneira de reduzir sua força.


Agora, verdade seja dita, ele não precisava ter aqueles rompantes de fúria. Ficou feio. No mínimo, pouco elegante e destoante da figura que dona Filomena criou. Mas deu pra entender porque ele e Marta ficaram tantos anos casados... Um bate-boca entre os dois, já pensou? Entendeu por que o Supla é daquele jeito? Então.


segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Encruzilhadas masculinas


Meus combalidos neurônios viveram um domingo de montanha russa... Uma linda exposição de gravuras do Oswaldo Goeldi na galeria da CEF na Paulista... No começo da noite, uma ótima peça: "Cloaca", com o grupo Tapa, no Shopping Frei Caneca (na foto, o afinadíssimo elenco: Dalton Vigh, Brian Penido Ross, André Garolli e Tony Giusti). Antes de dormir, juntei-me à massa que deu um recorde de ibope ao final de "A Fazenda". Foi ou não foi uma montanha-russa intelectual?


Por acaso, os programas tiveram algo em comum: o Homem. Na exposição de Goeldi, que viveu entre 1895 e 1961, chama a atenção a forma como o gravurista registrou a solidão que marcou sua vida. As figuras que aparecem em suas obras, lindas obras, são quase sempre solitárias, flagradas à noite, no desvio... Não há casais em encontros amorosos, nem suspiros românticos. Há ladrões, pescadores, bêbados e putas, todos solitários, mesmo quando em grupo. Goeldi, que viveu e morreu sozinho, deixou uma obra marcante e que merece ser vista na pequena galeria do Conjunto Nacional. Melhor ainda, é de graça. E apesar do tema, não é depressivo: é a arte a serviço de um sentimento possível.


No teatro Nair Bello, "Cloaca", primeira peça da holandesa Maria Gloos encenada no Brasil, coloca em cena quatro amigos quarentões: um funcionário público gay, um advogado cocainômano, um político do baixo clero e um diretor de teatro pretensioso. O político, com olhos numa indicação para o ministério, rompe o casamento e se refugia na casa do amigo gay - que tirou do acervo da prefeitura oito telas de um pintor pouco conhecido, cujo trabalho ganha uma super-valorização inesperada. Acuado, o rapaz pede a ajuda do advogado viciado, um surtado total, dado a ataques de agressividade. O político tem medo que a história vaze e prejudique sua indicação para o ministério, já que ele está hospedado na casa do funcionário ladrão. Para piorar a situação, o diretor de teatro vem anunciar a estréia de sua próxima peça de vanguarda, estrelada pela filha adolescente (e nua) do político, com quem ele vem tendo um affair.


Os quatro homens em cena falam pelos cotovelos, numa visão bastante feminina do que é um homem. Maria Gloos, no entanto, escapa da armadilha de considerar seus meninos um bando de porcos machistas, que oprimem mulheres e passam por cima de qualquer gentileza. Os personagens de "Cloaca" estão em pânico: já não são meninos, insistem em gritar a senha do clubinho (a tal Cloaca - uma palavra latina, que define um órgão ligado a excrementos) e, na única vez em que aparece uma mulher em cena, eles não se entendem por uma razão bastante prática: ela é russa e só fala russo. O público sabe o que ela está falando, mas o homem diante dela, não. É uma linda cena, em que os dois se expõem, não se acusam, pedem ajuda - mas é tudo inútil.


Por fim, acabei a noite vendo Dado Dollabela ganhar 1 milhão de reais na grande final do reality show "A Fazenda". À parte o fato que qualquer reality show, pra mim, é dirigido a Q.I.s de ameba com soluço, este de ontem teve um detalhe curioso. Quase no fim do programa, esticado até a exaustão por Brito Júnior, Dado saiu da casa e encontrou a família que o esperava, após 84 dias de confinamento: a mãe, o padrasto, dois irmãos e a namorada, grávida de seu primeiro filho. Adivinhem quem ele abraçou e beijou primeiro. A mãe. Como exemplo de amor filial, é lindo. Mas como exemplo de Homem... sinceramente, é esquisito.


O cara cresce e, teoricamente, abre as asas para construir seu próprio lar - com mulher, homem, cacatua ou formiga, tanto faz. Somos criados para, a partir do nosso ninho, criar outro. Quando Pepita Rodrigues tomou a frente da mulher de Dado, mandou o recado em rede nacional: "Nem se atreva a tomar meu menino, sua... Você está apenas esperando o filho dele." A moça grávida foi a quinta pessoa a ser abraçada por ele - até a babá dele foi abraçada antes. É lindo, é comovente, mas caramba... era o filho dele, o primeiro, ali. Dá pra entender porque o caso de Dado e Luana Piovani não deu certo: precisa ser uma mulher muito maleável pra enfrentar uma sogra tão super-poderosa, que conta com o apoio incondicional do filho mimado.


Esses homens de hoje... não sei... Os mais velhos estão assustados com a curva descendente. Os mais novos se recusam a crescer. E os velhos, que viraram do século 19 pro 20, deixaram de herança uma melancolia braba...

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Memória dos guarda-chuvas


Toda vez que chove na Avenida Paulista, eu lembro de uma conversa que tive no comecinho dos anos 90 com um amigo querido, Helinho Belik (que, como diz o Otávio Martins, já passou pro andar de cima). O Helinho morava em Nova York e chamou a minha atenção para os vendedores de guarda-chuva que brotavam do solo da Broadway a cada vez que chovia. Brotavam já carregados com os "five dolar umbrellas" - e aquilo pra mim foi a revelação de um admirável mundo novo, um mundo onde eu não precisaria mais prestar atenção no guarda-chuva, porque poderia comprar baratinho quando precisasse...


Tão antigo quanto lembrar do Michael Jackson preto ou entender o que significa a expressão "vira o disco", tratar um guarda-chuva como um bem de quase luxo é a maior deduragem de idade. É claro que ajudava muito não ter nascido em família rica (muito pelo contrário), mas que guarda-chuvas e sombrinhas eram "bens", eram mesmo. Tinham valor, tinham um peso na vida de alguém - você ter o "seu" guarda-chuva era tão bacana quanto, pros meninos, usar o primeiro par de calças compridas (ops, outra deduragem etária).


Se a felicidade dependesse disso, estaríamos resolvidos. Guarda-chuvas hoje são comprados na porta do cinema, do banco, do shopping... Custam baratinho e duram uma chuva, no máximo duas. E, provando que somos mesmo uma cópia mal tirada de Nova York, os vendedores brotam do chão antes mesmo que a primeira gota de chuva atinja o asfalto. Chega a ser fascinante: onde eles guardam aqueles carrinhos lotados de sombrinhas, guarda-chuvas enormes, de estampas variadas? Quem será o guardião das umbrellas?


Assim como o guarda-chuva, os relógios de pulso perderam muito de seu prestígio como "bem de valor". Estou falando dos relógios que nós, os mortais que pagam imposto, jantar e viagem, usamos. Não tem nada a ver com a coleção de Rolex ou Bulgaris dos colunáveis. Lembro que o Seiko ou o Omega eram marcas que meu pai e meus tios exibiam como troféus. Era um degrau a mais na precária escala social dos anos 60. Relógios "de marca" eram bens que os pais deixavam de herança para o filho mais velho ou que, em ano de décimo terceiro bom, premiavam quem passava de ano na escola (meu Deus, a gente corria o risco de repetir de ano! definitvamente, estou um dinossauro).


Atualmente, relógios de qualquer marca - de preferência, badalada, claro - podem ser comprados por uns trocados nos muquifinhos dos shoppings Coréia . A Suíça ainda leva a sério seus mecanismos que marcam o tempo, mas o pulo do gato, quem deu foi a China. Lá se pode comprar qualquer marca - e depois das últimas olímpíadas, tem muita gente exibindo dezenas de rolex e bulgaris autenticamente falsos, todos nascidos em alguma fabriqueta subterrânea da velha terra de Mao. É claro que muita gente prefere o legalizado e investe os tubos num Rolex autêntico (acho que foi o caso do Luciano Huck, lembram?), mas isso também não é mais fundamental.


O que os pais vão deixar de herança pro filho mais velho? Um Seiko de araque, que funciona a bateria e custa tão barato que nem vale a pena comprar uma bateria nova? Posso estar viajando na maionese, mas esses objetos hoje descartáveis serviam de baliza para nosso crescimento. Eram um prêmio, um sinal de status, uma medalha no peito do escoteiro mirim... Ele não nos extraía da massa, mas nos estimulava a prosseguir mais firmes no estudo - quem sabe, um relógio melhor? Aprendíamos a prestar mais atenção nas coisas e a não perder mais o guarda-chuva que a madrinha deu no Natal... Nossa, se continuar nessa linha de raciocínio vou acabar pedindo uma bolsa família com efeito retroativo...

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

A nova cidade limpa


Gilberto, o Alcaide, cortou 20 por cento da verba de limpeza pública em São Paulo. Diz ele aos jornalistas que não vai fazer diferença. Só se for na rua dele. Na minha e nas imediações da minha rua, dá pra sentir, sim, os efeitos dessa mão-de-vaquice kassábica: a coleta de lixo seletivo simplesmente não aconteceu esta semana e, numa rápida caminhada pelas imediações da Praça Roosevelt, hoje cedo, dava pra ver muito lixo acumulado nos cantos, à espera de seus catadores oficiais.

Mas eles não virão porque Gilberto, o Alcaide, decidiu reduzir custos (não, ele não tomou as mesmas providências em relação à publicidade, o que faz a alegria dos departamentos comerciais dos jornais). Notem que é o mesmo prefeito que acinzentou a cidade, mandando tirar todo e qualquer anúncio e letreiro das fachadas. É claro que reduziu muito a poluição visual, mas - mais uma vez - foi tudo tão radical que tirou qualquer traço de cor de uma cidade de natural pouco colorida. Certas ruas ficaram absolutamente pavorosas depois da Cidade Limpa - tínhamos uns prédios com mulheres de lingerie, homens de cueca e outras deliciosas indecências, que davam um inesperado toque humano no meio do mar de concreto.

A Ñova Cidade Limpa de Gilberto é muito estranha, porque é suja. Já não é fácil viver no meio de uma cidade poluída, com a umidade relativa do ar chegando ao subsolo, ruas escuras que mal se enxerga o outro lado, à noite... e ainda por cima, uma cidade suja! É irônico, porque é a mesma administração que zela por nossa saúde com o carinho e a determinação de um comandante nazista. Deve estar preocupada também com o bem estar dos ratos e outros bichos que proliferam com o acúmulo de sujeira.

Hoje, enquanto caminhava pelas ruas cobertas de lixo, me sentindo um figurante de "Ensaio sobre a Cegueira", o filme, me peguei pensando nos velhos filmes de ficção científica que víamos na Sessão da Tarde. O futuro, no cinema, era sempre sombrio. E eu nunca entendi o motivo, talvez porque seja um otimista descontrolado. Via máquinas de teletransporte, telefones com TV acoplada, reconhecimento pela íris, tudo tão moderno e bacana... Mas que ninguém se iludisse: no cinema, o futuro era sempre pouco convidativo.

Do jeito que as coisas andam, começo a achar que o futuro já chegou. Pelo menos, o futuro do cinema. Depois de ver, com alegria, a manifestação de diversas formas de pensar e agir... depois de crescer e me tornar adulto acreditando que há, sim, possibilidade de entendimento entre as pessoas... fico meio assustado em não ver isso acontecendo. Aliás, pelo contrário...

As atitudes, agora justificadas pela cruzada do bom mocismo, andam cada vez mais ditatoriais. É tudo um interminável "não pode". A internet, que possibilitaria uma discussão mais ampla de idéias, está sendo usada só pro bate-boca puro e simples: a qualquer argumento que desagrade, as pessoas já se armam de pedras e armas virtuais, aquarteladas no anonimato que a rede permite... Somos vigiados o tempo inteiro, em nome da segurança... Temos os nossos movimentos acompanhados minuto a minuto por redes de informação multinacionais... Estimulam o pior do caráter, pedem a delação como se fosse uma atitude nobre... Parece, a cada dia, que "1984", o romance de George Orwell, não tem data de validade. Um mundo sombrio e, com o auxílio do alcaide, fedido.


quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Cachimbo da paz pode?


Abatida a tiros a esquadrilha da fumaça, a vida em São Paulo prossegue com as insanidades de costume. Nem mesmo os destemperos verbais dos senadores, capazes de envergonhar uma convenção de pedófilos, conseguiram incendiar tantos corações. Os comentadores deste blog merecem os parabéns - com uma ou outra exceção, foram de uma finura exemplar e democrática. Se alguém der um pulinho no blog do Marcelo Rubens Paiva, poderá ler comentários raivosos, escritos por gente disposta a matar com requintes de crueldade o primeiro fumante que cruzasse seu caminho. Coisa mais feia.


Na vida real, ocorreu uma descoberta inesperada depois da proibição de fumar em ambientes fechados: fumantes falam. Incrível o topete dessa gente. Eles saem de onde estavam e vêm para a calçada fumar - e conversar! Uns até se paqueram. Psiu neles! (Alô, alô, galera da Gambiarra: todo meu apoio contra o exibicionismo autoritário do fiscalzinho que os atacou domingo, usando a lei anti-fumo como desculpa)


Mas uma coisa que a severidade da lei não previu: onde os fumantes vão jogar suas bitucas? As calçadas têm amanhecido sujas. É capaz de Gilberto, o Alcaide, baixar uma norma obrigando cada fumante a sair com uma pá ou uma latinha pra colher as próprias bitucas - algo parecido ao que os donos de cachorro (os educados, pelo menos) carregam quando levam seus totós pra fazer totô.


Na mesma semana em que a lei seca dos fumantes começou a valer, fui assistir um concerto na Sala São Paulo. O maestro Zubin Mehta regia a Filarmônica de Israel tocando a Sétima Sinfonia de Beethoven. Quer coisa mais sublime? Pois na minha frente, um sujeito com cara de não-fumante passou toda a primeira parte do concerto mandando torpedos pelo celular. A rigor, eu não tenho nada com a carência tecnológica do rapaz, mas a luz do celular em salas de espetáculo me incomoda. Eu estava lá pra ver o maestro, a orquestra e aquele contrabaixista brasileiro, que saiu de uma favela paulistana pra viver em Tel Aviv (meu Deus, como ele consegue viver numa cidade tão perigosa, com atentados que podem tirar a vida de qualquer um a qualquer instante? estou falando de Tel Aviv).


Pedi pro rapaz interromper o colóquio torpedístico. Foi tudo educado. Ele parou, mas olhou feio. Era capaz de, numa enquete, eu ser o linchado da dupla. O rapaz saiu da sala e, na volta do intervalo, veio acompanhado da namorada. A cretina se atrasou (pra colocar aquela roupa, francamente, não precisava nem ter acendido a luz do quarto, quanto menos perder a hora) e certamente entrou em pânico pra chegar na Sala São Paulo. A noite continuou sem transtornos, mas eu pensava que, assim como a fumaça de cigarro incomoda os não-fumantes, a falta de educação e civilidade também atrapalha os vizinhos.


O que, em nome de Deus, impede uma pessoa de desligar um celular durante um filme, um show, um concerto, uma missa...? Que desesperada necessidade de estar na outra extremidade do fio é essa? O espaço alheio não é invadido apenas por barulhos na madrugada ou fumaça de cigarro. As mesmas pessoas que vociferam contra uns, muitas vezes, cometem indelicadezas do tipo contra outros.


Já vivemos dias difíceis o suficiente: não podemos beber e dirigir (ok, isso é bom), nem fumar, nem falar na calçada, nem mesmo abraçar ou beijar quem nos interessa - vai que pega a suína? Deixem, pelo menos, que eu ouça o Zubin Mehta tocar o allegretto da Sétima Sinfonia... sem interrupções de celular tocando, tuíter em ação ou a velha e famigerada balinha embalada em plástico.


Acima de tudo, seria muito importante que nossos legisladores dessem algum bom exemplo que fosse. Dessem e não só cobrassem. Rigorosa por rigorosa, a lei anti-fumo na China é bem mais radical: não se pode fumar nem mesmo ao ar livre, caso o espaço seja o de um parque municipal (um Ibirapuera, um Trianon, por exemplo). Em Macau, não se pode nem mesmo atirar o chiclete mascado no lixo sem antes embrulhá-lo em papel higiênico (há multa alta pra quem for pego cuspindo o chicletinho no lixo - cuspir na rua nem passa pela cabeça deles).


No Oriente, é tudo policiado, vigiado, punido com rigor. Mas político que é pego roubando pede demissão numa vexatória cerimônia pública. Uns até se matam com transmissão ao vivo. Se certos exemplos fossem copiados, ia faltar caixão no mercado.


quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Onde há fumaça, há Serra


"É proibido fumar" era um ié-ié-ié muito legal dos anos 60, um dos primeiros sucessos do Roberto Carlos, depois regravado no final dos 70 por Gilberto Gil e Rita Lee, temperado pela ironia da situação - ambos tinham sido presos por porte de maconha. Hoje em dia, "é proibido fumar" virou o mantra de José Serra e seria uma iniciativa plena de elogios, se não fosse o clima terrorista que está sendo criado.



Parei de fumar há 12 ou 13 anos e continuo achando que foi uma das decisões acertadas da minha vida. Mas foi minha decisão. Não precisei de nenhum político invadindo o meu território pra dizer o que devo fazer pelo meu bem-estar. Por mais detestável que seja chegar em casa me sentindo um cinzeiro bastante usado, minhas entranhas democráticas se contraem diante do autoritarismo que vem no rastro da nova lei.


Primeiro, foi a proibição de se fumar em cena. Beiraria o ridículo, se não fosse medieval. Lembra as besteiras politicamente corretas dos Estados Unidos, como o pedido de uma estudante de artes plásticas numa universidade americana: cobrir a imagem da Maja Desnuda, de Goya, por ser uma exploração machista do corpo feminino... Como dizia Paulo Francis, é de pegar em armas.


No Brasil, diversas peças teriam mais uma despesa - arrumar um advogado que pedisse autorização judicial para os atores fumarem em cena. Depois disso, viria o quê? Proibido discutir temas religiosos porque há crentes na platéia? Proibido recitar "Navio Negreiro", porque não há preconceito racial no país? Foi preciso que um astro popular como Antonio Fagundes - que nem é meu ator favorito - subisse nas tamancas durante os ensaios de uma peça. "Meu personagem fuma em cena, sim. Quero ver quem vai me impedir!". Obrigado, Fagundes! Graças a ele, os ainda anônimos e batalhadores atores dos espaços culturais mais obscuros vão poder tragar sem medo de algum fiscal surgir na platéia vazia.


Pior que essa patetada foi a campanha pela delação pura e simples. "Se você estiver num bar e alguém fumar, chame o Zé Serra" - em linhas gerais, é esse o teor da coisa. Não sei vocês, mas eu fui criado em outro esquema. Se, apanhados em flagrante delito, eu ou meu irmão tentássemos jogar a culpa no outro com o clássico "Ele começou primeiro", levávamos uma bronca de minha mãe: "Não interessa quem foi." Ok, era uma democratização forçada da culpa, mas em mim teve o efeito colateral de não praticar nem admitir que pratiquem a delação perto de mim.


Vejo, portanto, com nojo esse estímulo ao mau-caratismo - deduragem pra mim é isso. Políticos cujo comportamento ético - basta ler os jornais - vale bem menos que a lavagem dos chiqueiros, aparecem como defensores do bem estar, paladinos da saúde, zeladores da coletividade... Prefiro dez deputados fumantes a um corrupto.
Vem à memória uma cena de "Círculo de Giz Caucasiano", de Brecht, em que os pais temem ter sido entregues pelo próprio filho à polícia nazista. Tenho medo de viver os mesmos tempos de desconfiança, em que um vizinho acione o comando de caça aos fumantes porque viu, de sua janela, alguém acendendo um cigarro na área da churrasqueira do condomínio (sim, está proibido fumar na área da - repito - chur-ras-quei-ra).

Tristes tempos em que floresce uma categoria pior que o fumante passivo - o obediente passivo.